quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Artigo - Eleição EUA - Outubro 2012

Terra da Oportunidade

As campanhas dos candidatos à Presidência dos Estados Unidos da América, cuja eleição ocorrerá no próximo dia 6 de novembro, poderiam gravitar em torno de diversos temas. Aspectos morais são, normalmente, fator relevante para a decisão dos eleitores daquele país. Aspectos econômicos, especialmente neste ano, ainda sob influência da maior crise financeira desde a Grande Depressão da década de 30, sempre têm muito peso no processo eleitoral. Ao que tudo indica, no entanto, a eleição norte-americana escolheu como principal tema de debate um aspecto mais institucional e filosófico, relacionado à forma como os dois candidatos e seus partidos veem a questão da oportunidade na sociedade.

Para os republicanos, a oportunidade aparece de forma espontânea, bastando deixar os cidadãos livres para empreender e alcançar o sucesso. Quando buscam modelos, apontam para o topo das camadas sociais, procurando mostrar que é possível ser bem sucedido por sua própria conta e iniciativa, independentemente da ação do Estado – o seu próprio candidato a Presidente, Mitt Romney, pretende simbolizar isso.

Preocupações – fundamentais, diga-se de passagem – com o déficit público e com o aumento da competitividade predominam no discurso baseado na certeza de que basta deixar o caminho livre e desimpedido para que os indivíduos – ainda que apenas alguns deles – prosperem. A raiz desse pensamento, na área política, pode ser encontrada nas ideias do Filósofo inglês John Locke (1632-1704), as quais, acredita-se, inspiraram a famosa frase utilizada na Declaração de Independência norte-americana que estabelece como direitos inalienáveis a vida, a liberdade e a busca da felicidade – lemas que, historicamente, sempre foram associados à concepção de um governo limitado. Na área econômica, mais recentemente, esse pensamento foi reforçado pelas opiniões de Milton Friedman (1912-2006), Professor da Universidade de Chicago que se opunha ao keynesianismo dominante, defendendo uma política macroeconômica de livre mercado e intervenção mínima do Estado.

Essa crença na mão invisível do mercado permanece inabalável no discurso republicano, mesmo quando o mercado mete os pés pelas mãos de forma bem visível – como ocorreu na crise de 2008. Na Convenção desse partido, por exemplo, o candidato a vice, Paul Ryan, deixou claro que, entre impor limites ao crescimento e impor limites ao tamanho do governo, “eles escolhem limitar o governo”, apostando na redução de impostos, na simplificação da regulação e “no potencial de uma nação livre, no poder da livre iniciativa e das comunidades fortes de superar a pobreza e o desespero”.

Já os democratas, na área econômica, parecem ainda sob a influência de John Maynard Keynes (1883-1946) – lembrando que as ideias desse economista foram postas em prática pelo governo democrata de Franklin Roosevelt, que procurou combater a depressão econômica por meio de fortes gastos públicos. E, politicamente, os democratas dão a impressão de seguir o pensamento de filósofos como John Rawls (1921-2002), que defendem que a igualdade de oportunidades tem que ser garantida pelo Estado, caso contrário os indivíduos não conseguirão desenvolver as suas reais capacidades – usando a terminologia de Amartya Sen que, embora critique Rawls, concorda com ele nesse ponto –, o que impedirá que o ideal de justiça seja alcançado.

Assim, os democratas tendem a concentrar suas preocupações nas dificuldades que cidadãos de diferentes origens podem enfrentar para chegar ao sucesso, em um mundo cada vez mais competitivo, em que preocupações básicas com saúde e educação podem impedir que as pessoas avancem. Na Convenção desse partido, o discurso que deixou mais claro esse ponto de vista foi o do Prefeito de San Antonio, Julian Castro, que afirmou acreditar que a “oportunidade hoje criada levaria à prosperidade de amanhã” e que, embora seja normal em uma economia de livre mercado que alguns tenham mais sucesso que outros, não é aceitável que alguns “sequer tenham chance” de fazê-lo.

Obama, melhor do que ninguém, inclusive em seu próprio partido – nem mesmo Bill Clinton, provavelmente o melhor político mundial da atualidade – reflete essa visão mais multicolorida, em contraste com a convicção monocromática de seus adversários, que tardam em reconhecer que os Estados Unidos se tornaram um país menos homogêneo, em que as diferenças de ponto de partida entre os cidadãos passaram a representar um peso maior do que antes na hora de determinar quem conseguirá alcançar o sucesso. Em seu discurso na Convenção Democrata, pregou: "Sim, nossa estrada é longa, mas viajamos juntos. [...]. Não deixamos ninguém para trás. Nós nos ajudamos".

O elefante republicano se vê no espelho e esquece que nem todos têm o mesmo tamanho e que alguns precisam de ajuda para desenvolver as suas capacidades e crescer. Por entender a sociedade de uma forma mais complexa e interdependente, o burro democrata, por sua vez, vacila e empaca, o que pode levar a governos menos determinados – e Obama é visto, por muitos, como um Presidente hesitante.

Pesquisas acabam capturando essa percepção de que a empatia com o candidato que se preocupa em não abandonar ninguém nem sempre é acompanhada da confiança de que ele é o mais indicado para o comando. Em uma enquete recente, realizada pelo Washington Post/ABC News, diante da pergunta sobre qual dos candidatos seria “um amigo mais confiável”, 50% dos eleitores escolheram o democrata e 36% o republicano. E “quem você convidaria para jantar na sua casa?”: 52% levariam Obama e 36% Romney. No entanto, quando questionados sobre quem gostariam que fosse “o capitão de um navio durante uma tempestade”, os números entre eleitores independentes passam a ser de 44% para o republicano e 43% para o democrata.

Só empatia, portanto, não é suficiente para ganhar a eleição. Obama terá que mostrar que sua ideologia funciona e que seus planos são mais eficientes do que os de seu adversário que, amparado no discurso de que só não consegue quem não quer, tenta se valer de seu perfil de self-made man para demonstrar que Obama é, vá lá, um sujeito legal, mas não está preparado para dirigir o país nesses tempos difíceis.

Certo reconhecimento de que lá, como em nenhum outro país, seria o melhor lugar do mundo para um indivíduo prosperar, não importando a sua origem social ou familiar, conferiu aos Estados Unidos a fama de “terra da oportunidade”. Os candidatos parecem diferir, no entanto, sobre o papel que o governo tem em assegurar que isso aconteça. A eleição caminha, assim, para um embate entre o liberalismo político e o liberalismo econômico. Como meio termo lá não há, a disputa se resolverá com base na percepção que a população norte-americana terá de qual dessas visões pode resolver os seus problemas presentes sem minar as condições para um futuro melhor.

Publicado na Revista Jurídica Consulex n. 377, outubro de 2012

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Artigo - Valor - 13/08/12

Insegurança Jurídica na AL

Eduardo Felipe P. Matias

Um fantasma assombra a América Latina - o fantasma da insegurança jurídica. E ele vem assustando não apenas as empresas, mas também os cidadãos e até mesmo os próprios governantes, tanto no plano nacional quanto no regional.
Assusta as empresas, como ocorreu na Argentina quando o Congresso aprovou a expropriação da participação da Repsol na YPF e o vice-ministro da Economia afirmou que "segurança jurídica e ambiente de negócio são palavras horríveis", deixando claro que a empresa espanhola teria dificuldades em obter sua indenização. Isso, é claro, tem seu preço. O volume de capital estrangeiro aplicado na América Latina subiu 31% em 2011. Porém, enquanto ao Brasil foram destinados 43% do total, a Argentina recebeu apenas 5% desses recursos, e a Venezuela, 3,5%. Obviamente, a leitura desses números deve considerar a dimensão econômica de cada país - o que torna a comparação com o Brasil desigual. Mas o Chile, com PIB de US$ 248 bilhões, recebeu 11% dos investimentos externos, o dobro da Argentina e o triplo da Venezuela - com PIB de US$ 445 e US$ 316 bilhões, respectivamente.
Coloca temor também na população, como no caso da Venezuela, onde a Human Rights Watch constatou em relatório recente que o acúmulo de poder pelo Executivo e a eliminação das garantias institucionais permitem intimidar e censurar aqueles que se opõem aos interesses do governo. E a insegurança jurídica pode tirar o sono até dos próprios governantes, como descobriu o paraguaio Fernando Lugo ao ser deposto sem o adequado direito de defesa.
Ironicamente, no plano regional, a mesma Venezuela se aproveitou da suspensão do Paraguai para entrar no Mercosul. Claro que a saída do presidente paraguaio, se foi legal, foi pouco legítima. Mas os demais países membros do Mercosul, ao incluírem a Venezuela às pressas no bloco, também deram mostras de não levar tão a sério o devido processo legal.
Isso porque o Protocolo de Ushuaia (assinado em 24/6/1998 por Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, Bolívia e Chile reafirmando o compromisso democrático) estabelece a necessidade de consultas antes de suspender um membro no qual possa ter havido ruptura da ordem democrática. Essa suspensão é uma decisão grave, que mereceria maior discussão. Ainda mais quando ela acaba possibilitando a entrada de um novo integrante, o que, pelas regras do bloco, exigiria a unanimidade de seus membros.
É triste que a segurança jurídica seja vista como uma "palavra horrível" ou como um conceito a ser distorcido quando se opõe a interesses conjunturais. Ela é um princípio que visa garantir a estabilidade, a confiança e a previsibilidade nas relações entre o Estado e os cidadãos, assegurando que um direito não será alterado apenas em razão de certas circunstâncias ou conveniências. Está relacionada a outros princípios, como a coisa julgada, o direito adquirido e a irretroatividade da lei, que estabelecem que não se deve modificar relações jurídicas validamente consolidadas. Não é um conceito inventado para proteger grandes investidores, cidadãos privilegiados ou o grupo político que está no poder. Busca resguardar também as pessoas comuns, uma vez que garante, por exemplo, àquele que junta dinheiro a vida inteira para comprar uma casa que, caso esta seja desapropriada para alguma obra pública, isso será feito dentro da lei e lhe dará direito a uma indenização justa. Ou que aquele vereador de oposição de uma pequena cidade não terá o seu mandato cassado sem motivo. Ou que o país que assume determinadas obrigações em um processo de integração deverá ter, no mínimo, o direito a se defender quando for questionado por seus colegas de bloco, ainda que a legitimidade de seus atos possa ser considerada duvidosa.
Assim, se no plano nacional, a segurança jurídica é princípio constitucional, essencial para o Estado de Direito, internacionalmente, ela também deve ser perseguida e garantida. Os investimentos estrangeiros estão amparados não apenas pelo direito do país receptor, mas também em instrumentos como os tratados bilaterais de investimento e a arbitragem, que procuram propiciar o mesmo ambiente de confiança e estabilidade que deveria ser assegurado aos investidores nacionais. Os direitos humanos, igualmente, evoluíram na direção de garantir a sua proteção internacional, por meio de instituições como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. E os blocos regionais contam com seus próprios mecanismos de proteção aos direitos de seus participantes.
Tanto no plano nacional quanto no regional ou internacional, a ideia de justiça está diretamente vinculada à de ordem, que deve ser assegurada pelas instituições. Está comprovado que o sucesso de uma civilização está diretamente relacionado à solidez de suas instituições. Admitir que estas são frágeis a ponto de não garantir a segurança jurídica seria reconhecer o fracasso. Talvez, até por isso, nenhum país ou região menosprezem esse princípio de forma ostensiva, ou se gabem de não lhe dar valor - mesmo aqueles onde a segurança jurídica de fato não existe. Pelo menos não até estas declarações e eventos recentes...
Publicado no jornal Valor Econômico em 13/08/2012:

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Rio+20, Balanço Final

Rio+20: Fim do Começo, ou Começo do Fim? 

A Rio+20 terminou e o sentimento final é uma mistura de indignada frustração e esperança em parte auto-alimentada, em parte real.

Indignada frustração porque, como já era esperado, nenhuma decisão importante foi tomada pelos governos, nenhum compromisso relevante foi assumido. Que governos eleitos não percebam a urgência de agir é algo que diz muito a respeito dos nossos governantes, mas diz muito também sobre nós mesmos.  É desanimador. Principalmente porque, como comentei em meu post de ontem, os governos têm um papel fundamental na promoção da sustentabilidade, apesar de todas as mudanças que fizeram deles apenas mais um dos diversos níveis de poder da governança global. Não podemos nos esquecer, no entanto, que só os Estados podem impor impostos sobre o carbono, dar incentivos fiscais aos first-movers, entre tantas outras políticas públicas que, se adotadas, dariam forte impulso ao ciclo virtuoso da sustentabilidade.

Esperança, em parte auto-alimentada, porque é preciso acreditar para seguir em frente e continuar na luta, mesmo quando o desafio parece grande demais e as probabilidades de que as coisas deem errado, assustadoras. Esperança também em parte real, porque atores hoje muito relevantes estão fazendo a sua parte e se mobilizando para que outros também o façam. Isso ficou comprovado pela forte reação da sociedade civil ao documento aprovado na conferência e por mais alguns eventos hoje realizados por entidades empresariais, como o CEBDS, que apresentou a sua Visão 2050 para o Brasil, e o Instituto Ethos, que convocou a União Global pela Sustentabilidade.

Essa onda tem grande poder de transformação. Ela ficou um pouco mais volumosa no Rio, e promete seguir avançando. Talvez seja uma ilusão achar que ela será suficiente para preencher a lacuna que a falta de capacidade dos Estados de chegarem a uma decisão nessa Rio+20 irá deixar. Talvez não. Mas como Marina Silva lembrou no lançamento da União Global pela Sustentabilidade, os governos chutaram a bola de volta para a sociedade civil e as empresas. Não nos resta outra opção senão seguir jogando. Os governos querem nos fazer acreditar que a Rio+20 é o fim do começo. Do começo do caminho rumo ao desenvolvimento sustentável. Mas somos nós que vamos ter que suar a camisa, para que ela não tenha sido o começo do fim. Do nosso fim.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Rio+20, D2

"O mundo mudou, é verdade, mas os Estados continuam merecendo um puxão de orelha"

Interessante assistir a um consenso se formando. Aqui na Rio+20, esse consenso é o de que, apesar dos resultados práticos pífios da conferência, valeu a pena, porque a sociedade civil e as empresas saem daqui mais conscientizadas e mais organizadas.

Concordo plenamente. Porém, isso não significa que os Estados não mereçam um puxão de orelha pela incapacidade de estabelecer metas e assumir compromissos claros, depois de tanta discussão.
Que o poder dos Estados é hoje diluído entre diversos atores, como as empresas e as ONGs, isso é fato. Analiso esse processo, diretamente relacionado à globalização, em meu livro "A Humanidade e suas Fronteiras". Por isso mesmo, não haverá mundo sustentável sem o envolvimento desses outros atores, que são peças fundamentais da chamada governança global da sustentabilidade - que foi, inclusive, um dos temas da Rio+20. 

No entanto, os Estados também têm o seu papel a exercer, e este é fundamental, como demonstraram ao menos dois eventos da Rio+20 a que tive a oportunidade de assistir hoje.

Um deles, um "side event" do FMI no Riocentro, discutiu instrumentos fiscais e políticas públicas que podem ser adotadas para estimular a economia verde. Ora, esses instrumentos e políticas dependem dos Estados. Ainda acho que esta conferência, se tivesse escolhido como objetivo apenas discutir e avançar no tema da precificação do carbono, teria contribuído mais para o desenvolvimento sustentável do que acabou fazendo ao adotar uma infinidade de temas e não tomar decisões sobre nenhum deles.

O outro evento, uma palestra no Humanidade 2012, no Forte de Copacabana, mostra que mesmo as empresas que começaram a se preocupar com a sustentabilidade ainda precisam sofrer grandes transformações para que se possa afirmar que seus negócios são realmente sustentáveis. E essa transformação se dá pela pressão da sociedade civil e dos indivíduos, mas seria muito acelerada se contasse com a pressão dos governos, que podem forçar as empresas a adotarem mecanismos que, de fato, podem interferir em seu DNA "externalizador".

Desde muito cedo, ficou claro para todos que não se podia esperar grande coisa dos governos na Rio+20. O rascunho de declaração que deverá ser aprovado amanhã reflete essa realidade. Mas é importante que o consenso sobre a importância dos outros atores na busca do desenvolvimento sustentável não leve os Estados a serem menos cobrados. Eles precisam ser pressionados para assumir a sua responsabilidade nesse processo.

Rio+20, D1, 20/06/2012

"Pelo Rascunho Zero da Rio+20, o caminho em direção ao desenvolvimento sustentável será percorrido um passo de cada vez. Pena que talvez não dê para chegar a tempo..."


O primeiro dia “oficial” da Rio+20 acabou em frustração. Frustração pela incapacidade dos líderes mundiais de chegarem a um acordo que encurte o percurso que leva a um mundo mais sustentável. Frustração pela nossa incapacidade (afinal, sociedade civil e setor privado, reunidos em diversos eventos paralelos, parecem convencidos do imperativo da sustentabilidade) de convencer os nossos governantes de que chegou a hora de atitudes determinantes, com a adoção de metas e o desembolso de recursos que permitam assegurar que o desenvolvimento sustentável superará a mera retórica.

Os negociadores brasileiros, diga-se de passagem, não deveriam ser crucificados – como vem sendo – pela nova proposta de “rascunho zero” que, na verdade, apenas reflete a lamentável impossibilidade de um acordo. O pior que poderia acontecer, talvez, seria chegar ao final desta Rio+20 sem NENHUM acordo. O texto proposto pouco garante, é verdade. Chega a ser frouxo. Mas, se em vez de pouco, ao final da conferência não tivéssemos NADA, seria um desastre. O texto proposto, ao menos, reafirma alguns princípios caros aqueles que defendem o desenvolvimento sustentável e, se aceito – como parece que foi – pelos líderes mundiais, ao menos contribui para consolidar um discurso que aponta o caminho certo.

O problema é que esse caminho é longo, e já deveríamos, há algum tempo, ter nele avançado muito mais do que foi feito até agora. O  aquecimento global e outras fronteiras ambientais que estamos ultrapassando sem dó não irão esperar que criemos juízo. O fato é que fica claro, pelo caminhar da Rio+20, que o desenvolvimento sustentável não será alcançado rapidamente. Talvez já seja, inclusive, tarde demais. Mas os líderes mundiais parecem não ter pressa...

terça-feira, 19 de junho de 2012

Matéria - Valor Econômico - 17/06/12

Aumenta a influência das ONGs e do setor privado


Por Giselle Paulino | Para o Valor, de São Paulo

No modelo da economia verde, que vislumbra uma sociedade mais justa com uso sustentável dos recursos naturais, entidades privadas e da sociedade civil ganham um papel fundamental. Cerca de 70% da economia global está nas mãos das empresas. Não se pode falar de economia verde sem considerar o setor.

Já as ONGs não têm o poderio econômico das empresas, mas o terceiro setor também se tornou transnacional. O uso da internet e a velocidade nas comunicações possibilitaram a formação de redes para monitorar a ação dos governos que deixam de respeitar os direitos humanos e empresas pouco sustentáveis.

"A sociedade civil se especializou e ganhou mais credibilidade dentro de debates sobre temas da atualidade ", diz Eduardo Matias, sócio da Nogueira, Elias, Laskowiski e Matias Advogados. "Em alguns casos, chega a orientar Estados em negociações internacionais que não teriam tanto conhecimento para agir sozinhos", explica.

Pelo lado empresarial também existem características que podem ser aproveitadas. "As empresas transnacionais possuem dinamismo e criatividade, muito bem vindos neste momento. As empresas também têm grande poder de pressão para moldar políticas públicas, possuem conhecimento sobre os impactos das políticas para suas atividades e têm mais informações do que o próprio governo sobre inúmeras questões", aponta Matias.

Nesse novo contexto, empresas, governo e sociedade civil podem contribuir para o ciclo virtuoso da sustentabilidade. Segundo Matias, é preciso atentar para o fato de que o DNA das empresas não é sustentável. A proporção de investimentos para as energias renováveis continua quase insignificante. "Não há preços adequados para recursos escassos. As empresas maximizam lucros e o custo vai para terceiros, como poluição", afirma.

Em sua visão, provar que existe um business case de sustentabilidade ainda é a melhor forma para seduzir as empresas para fazer parte da economia verde. Os resultados positivos existem. Há vantagens como redução de riscos, ganhos com o controle de desperdícios e melhor gerenciamento dos recursos, além de ganho na reputação do empreendimento.

"Podemos perceber que há vinte anos as empresas entravam para os movimentos de responsabilidade social mas sem internalizar a estratégia na economia", lembra Elizabeth Laville, fundadora e diretora da consultoria Utopies. "Hoje algumas iniciativas que começam a despontar sinalizam que o cenário pode ser diferente nos próximos anos", diz. É o que ela chama de RSE 2.0, ou seja, empresas do movimento de responsabilidade social que mudam seus produtos e serviços.

Segundo Elizabeth, essa tendência acontece a partir de 2010 com a entrada de produtos como o carro verde. Nesta segunda era da RSE, bancos que investiam
apenas em programas de ecoeficiência como reciclagem de papel, computadores com menor gasto de energia, hoje olham para os projetos que estão aplicando dinheiro. "Entre 1995 e 2010 o intuito do movimento de responsabilidade social era engajar as empresas. A partir disso, a ideia de produzir em parceria ganha um dimensão. É claro que sozinhos, os carros verdes não vão fazer diferença para o mundo, mas esta é a tendência", diz.

A dúvida é se casos pontuais são suficientes para mudar a economia. "Certamente a consciência aumentou muito nos últimos anos. Mas não podemos passar os próximos 20 anos falando sobre o mesmo assunto. As empresas precisam agora parar de falar em transparência e processos e focar em formas para medir seus impactos negativos", diz Mag Taylor, conselheira da CAO, entidade independente ligada ao IFC, braço da Corporação Financeira Internacional do Banco Mundial.

http://www.valor.com.br/rio20/2715358/aumenta-influencia-das-ongs-e-do-setor-privado

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Complicando a Economia Verde

"Não importa o tom de verde da economia, desde que ela cace carbono"

As discussões sobre a Economia Verde estão patinando na Rio+20. Os países não conseguem chegar a um acordo, e o próprio conceito, para agradar a todos, vai se transformando em um monstrengo.

Porém, o fato de que estamos extrapolando todos os limites do planeta não permite mais que fiquemos andando em círculos. Economia verde é aquela que entende que o abuso dos recursos escassos tem um preço para a sociedade, e que age conforme essa compreensão.

E, se entre esses limites, as mudanças climáticas são o mais urgente, economia verde equivale à economia de baixo carbono, com reduzidas emissões de gases de efeito estufa. Esta só irá acontecer com incentivos adequados para a inovação e mecanismos para que esta se espalhe rapidamente. Esse é o foco que não podemos perder. Não importa o tom de verde da economia, desde que ela cace carbono.

domingo, 20 de maio de 2012

Rio+20 - Entrevista - site Época - Maio 2012

“Não há desenvolvimento sustentável num mundo castigado pelas mudanças do clima”

Eduardo Felipe Matias é sócio responsável pelas áreas internacional e de sustentabilidade do escritório Nogueira, Elias, Laskowski e Matias Advogados. Escreveu o livro A Humanidade e suas Fronteiras: do Estado soberano à sociedade global, ganhador do Prêmio Jabuti em 2006. E continua pesquisando o tema. Em entrevista ao Blog do Planeta, ele conta por que as mudanças climáticas viraram a prioridade para a Rio+20.


ÉPOCA: O que podemos esperar da Rio+20?
Eduardo Felipe Matias: Menos do que se deveria, considerando a urgência do momento atual e o foco que tem sido dado até agora para a Conferência. Os dois temas principais que serão tratados na Rio+20 – a economia verde e a estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável – são essenciais. O problema é que, em cada um deles, o enfoque deveria ser um pouco diferente. A economia verde não irá vingar enquanto não se passar a considerar, na formação do preço dos produtos e dos serviços, os custos sociais e ambientais das emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa. Quando isso acontecer, produtores e consumidores serão induzidos a optar por produtos baseados em tecnologias de baixo carbono. A atribuição de um preço ao carbono poderia ocorrer de diversas maneiras – sendo que a mais promissora parece ser a criação de impostos nesse sentido. Essa é uma discussão, no entanto, que parece que irá passar longe da Rio+20.


ÉPOCA: Qual é a utilidade de reformar a ONU?
Matias: Essas discussões são o outro tema principal da Conferência. O debate é fortalecer o Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA) ou criar uma nova agência nos moldes da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou da Organização Mundial da Saúde (OMS). No entanto, o sistema interestatal não tem condições de promover sozinho a sustentabilidade global. A governança do desenvolvimento sustentável depende de diversos atores, como as empresas transnacionais, as organizações não governamentais e vários outros diferentes níveis de autoridade com capacidade de emitir regras que são seguidas por seus membros, muitas vezes voluntariamente. A Rio+20 deveria contribuir para a criação de um ciclo virtuoso da sustentabilidade que estimulasse a ação de todos esses níveis de autoridade. Por isso, seu foco não deveria se concentrar apenas na ação direta dos governos nacionais, mas na indução e na regulação dos comportamentos desses outros atores.


ÉPOCA: A Rio+20 trará resultados concretos ou será mais um avanço simbólico?
Matias: O panorama que está se desenhando é o de que, se houver algum resultado significativo, este será a adoção dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Seriam metas concretas que os países se comprometeriam a alcançar em áreas importantes como energias renováveis, uso da água etc. Ainda que não se tenha tempo de definir em detalhe todas essas metas durante a Conferência, se os países mostrarem uma vontade firme de estabelecê-las em um futuro próximo – fala-se em 2015 – esse seria ao menos um avanço simbólico importante.


ÉPOCA: Para que servem os objetivos de desenvolvimento sustentável?
Matias: O êxito da economia verde depende menos dos governos e mais das empresas – é importante lembrar que o setor privado é responsável por 70% da economia global. Sem empresas verdes não há economia verde.
Algumas empresas têm se antecipado e adotado práticas sustentáveis, confiando que estas em algum momento se tornarão obrigatórias. Acredito muito no papel desses vanguardistas nesse processo. Essas empresas tendem a pressionar os governos para que lhes assegurem condições para avançar rumo a modelos de negócios mais sustentáveis, sem perder sua capacidade de competir. Logo, os governos se comprometerem com alguns objetivos relacionados ao desenvolvimento sustentável é um elemento muito favorável para esse movimento, contribuindo para o ciclo virtuoso da sustentabilidade a que me referi anteriormente.
Isso porque, para que um grande número de empresas invista em “esverdear” a sua produção, estas precisam ter certeza de que a economia local e mundial caminha na direção de assegurar benefícios àqueles que apostarem em tecnologias de baixo carbono e penalizar aqueles que não o fizerem. Os ODS seriam um forte estímulo nesse sentido.


ÉPOCA:Como comparar a Rio+20 com a Rio92?
Matias: Primeiro, são duas conferências diferentes em sua preparação. A Rio92 foi o ponto final de um processo de negociação que estava mais avançado e resultou em documentos como a Convenção do Clima e a Convenção da Biodiversidade. Já a Rio+20 tem sido vista como o ponto de partida para novas discussões sobre o desenvolvimento sustentável. O momento das duas é também bem diferente. A maior mudança talvez tenha ocorrido no plano da geopolítica e da economia. Alguns países que apenas assistiam aos debates há 20 anos hoje têm influência nas decisões. A ascensão dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) contrastou com a queda na participação dos países da OCDE no PIB mundial. Isso, por um lado, torna as deliberações mais complexas, mas também deixa as decisões mais abrangentes. Tratando-se de meio ambiente, tema que pede o engajamento de todas as nações – o atual é um cenário mais promissor.
Esse engajamento por parte dos países emergentes é, inclusive, necessário. Nos últimos 60 anos, a participação dos BRICs no total mundial de emissões de gases de efeito estufa aumentou de 15% para 35%. Logo, pensando nas mudanças climáticas, não há solução viável sem o envolvimento dos emergentes.


ÉPOCA: As descobertas científicas recentes aumentam a urgência da Rio+20?
Matias: A ciência evoluiu em sua compreensão das mudanças climáticas. Em 1992 esse era um tema que já havia adquirido importância, mas não se tinha ainda ideia da gravidade dos efeitos que a ação humana está provocando no meio ambiente. Hoje a sustentabilidade é um tema que mobiliza um número expressivo de pessoas, a cobrança aumentou e os governantes estão mais pressionados a agir. Isso também é bom.


ÉPOCA: O quanto a crise econômica global pode afetar a Rio+20?
Matias: Essa circunstância pode aumentar a resistência dos Estados Unidos em assumir compromissos fortes – principalmente em ano eleitoral – e deve diminuir o engajamento da Europa, que sempre esteve à frente do movimento pelo desenvolvimento sustentável. Essa liderança poderia, quem sabe, vir a ser ocupada pelos países emergentes – embora estes também pareçam ainda desconfiados de que crescer de forma sustentável é possível, isso sem falar no medo de que a economia verde só iria servir para justificar a imposição de novas barreiras comerciais a seus produtos. Seria, de qualquer forma, uma boa oportunidade para o Brasil aumentar o seu peso no cenário internacional.

ÉPOCA: Quais são os maiores desafios para o mundo hoje?
Matias: Não tenho dúvidas de que o maior desafio é deter as mudanças climáticas.
Nesse sentido, a Rio+20 não poderia deixar o foco em meio ambiente de lado, e não deve, principalmente, varrer o problema das mudanças climáticas para baixo do tapete sob o pretexto de que o foro adequado para tratá-lo é o processo de negociação no âmbito da Conferência do Clima. Se a sustentabilidade depende – e depende – do econômico, do social e do ambiental, o ambiental é o pé desse tripé que está mais bambo. Não há desenvolvimento sustentável num mundo castigado pelas mudanças do clima.


ÉPOCA: Por que as mudanças climáticas viraram o tema ambiental mais relevante?Matias: Porque praticamente todos os outros graves problemas ambientais estão a ela interligados.
Recentemente, um grupo de cientistas do
Centro de Resiliência de Estocolmo chegou à conclusão de que as pressões que a ação humana exerce sobre o sistema terrestre alcançaram uma escala na qual uma mudança ambiental global abrupta ou irreversível não pode mais ser descartada. Esses autores definiram “limites” ou “fronteiras” planetários que, se ultrapassados, poderiam trazer efeitos catastróficos para a humanidade. Essas 9 fronteiras são as seguintes: poluição por produtos químicos; acidificação dos oceanos; acúmulo de aerossóis; consumo de água doce e ciclo hidrológico global; camada de ozônio; mudança do uso da terra; interferência nos ciclos globais do nitrogênio; taxa de perda da biodiversidade; mudança climática. Eles estimam que esses três últimos limites já foram ultrapassados. Claro que todos esses são problemas importantíssimos, que merecem máxima atenção. Porém, de todos eles, o da mudança climática me parece o mais grave, porque é aquele em que, mais claramente, nos aproximamos de alcançar o ponto de não retorno – se é que isso já não ocorreu, como defendem esses cientistas. E é um limite que tem efeitos sobre diversos outros. Por exemplo, há estudos que afirmam que uma mudança radical do clima, que venha a alterar o regime de chuvas na região amazônica, podem levar a um processo de savanização da floresta, com sérias consequências para a sua biodiversidade. Por isso, o combate às mudanças climáticas deveria ser visto como prioridade. O atraso em fazê-lo pode agravar todos os outros problemas ambientais.

ÉPOCA: E a erradicação da pobreza?
Matias: Também um assunto urgente. A miséria e a fome são a maior vergonha da nossa civilização. No entanto, qualquer avanço na área do combate à pobreza será rapidamente anulado em um mundo em desordem ambiental. Os efeitos econômicos e sociais de secas ou inundações anormais, de tempestades que devastem habitações e plantações, são sentidos mais intensamente pelos mais pobres. Por isso, é preciso pensar, muito mais do que vem sendo feito até hoje, na adaptação que será necessária para aliviar os danos que as mudanças climáticas poderão trazer para alguns países. E evitar essas mudanças não é tarefa fácil, daí o tamanho do desafio. Implica grandes transformações em diversas áreas, como transportes, agricultura, energia. Nesta última, por exemplo, a substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis é um processo complicado, cujo sucesso depende de inovações que aperfeiçoem e barateiem as tecnologias existentes, e talvez não seja bem sucedido sem a invenção de novas tecnologias. Isso demanda investimentos pesados em pesquisa e desenvolvimento por parte dos governos e das empresas. Vencer esse desafio requer também mudanças no comportamento de toda a sociedade, em um esforço concentrado como nunca antes se viu na história da humanidade.


ÉPOCA: Diante de uma grande crise financeira atual, com as maiores economias do mundo andando de lado, faz sentido discutir crescimento sustentável do ponto de vista ambiental e social?
Matias: Faz todo o sentido. Costumo dizer que a crise ambiental e a crise financeira são faces da mesma moeda, porque os mesmos incentivos e motivações equivocados que levaram a uma nos conduziram à outra. Ambas resultam de vivermos acima de nossas possibilidades, sejam elas econômicas, sejam elas ambientais.
Sem mudar esses incentivos, viveremos uma nova crise financeira e não evitaremos a crise ambiental ou a crise social.


ÉPOCA: Nem se esses incentivos levarem ao crescimento agora?
Matias: De nada adianta continuar crescendo – ou voltar a crescer – nos moldes atuais. Não podemos nos esquecer da origem da expressão “desenvolvimento sustentável”. Ela só passou a ser utilizada porque, em determinado momento, notamos o risco de continuar crescendo com base em uma demanda por recursos naturais que supera a capacidade de regeneração do planeta. Quando se fala em atender as necessidades atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender as suas próprias necessidades, o que se quer dizer é que o desenvolvimento que prejudica o ambiente afeta também o desenvolvimento futuro. Só que o grau de destruição da natureza foi tamanho nas últimas décadas que não é apenas o desenvolvimento das gerações futuras que está em jogo. As gerações atuais já irão sofrer os efeitos desse crescimento insensato. Por isso, é fundamental que, ao procurar atender as demandas atuais, como a geração de empregos, esse esforço esteja alinhado com a preocupação em preservar os recursos do planeta. Pior que uma crise econômica, só uma crise econômica acompanhada por desastres ambientais.


(Alexandre Mansur)

Publicado no site da revista Época - Blog do Planeta - em maio de 2012
(http://colunas.revistaepoca.globo.com/planeta/2012/05/16/nao-ha-desenvolvimento-sustentavel-num-mundo-castigado-pelas-mudancas-do-clima/)

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Perigos do Protecionismo - Artigo - Maio 2012

os perigos do protecionismo
Eduardo Felipe P. Matias

Se crises econômicas costumam provocar protecionismo, grandes crises econômicas tendem a causar grande aumento no protecionismo. Desde 2008, a maioria dos países tem se dedicado a recuperar suas economias e a lutar contra os efeitos nocivos da maior crise das últimas décadas. A pouca paciência de governantes e eleitores por soluções de médio e longo prazos estimula a lógica do “cada um por si” que leva, quase inevitavelmente, a medidas paliativas de caráter protecionista, nem sempre adequadas.
O Brasil, durante esse período, não fugiu à regra. Desde 2008, o País vem criando, em média, uma nova barreira a cada quinze dias, o que contribuiu para alçá-lo, no final de 2011, à posição de economia mais fechada do G-20, segundo levantamento realizado pela Câmara Internacional de Comércio.
Vale fazer uma ressalva. O protecionismo é uma atitude negativa para com a abertura comercial e as importações em geral, amparado em medidas que beneficiam a produção doméstica em detrimento de competidores estrangeiros. Parte das ações adotadas pelo governo brasileiro, no entanto, são de defesa comercial, e não necessariamente protecionistas. É o caso de medidas antidumping, que procuram evitar que produtores nacionais sejam prejudicados por importações realizadas a preços inferiores àqueles praticados para o produto similar na venda para consumo interno no país exportador. Isso vale também para medidas de salvaguarda, utilizadas quando o aumento no fluxo das importações de determinado produto cause, ou ameace causar, prejuízo grave aos produtores domésticos daquele setor, e para as medidas compensatórias, que têm como objetivo compensar certos tipos de subsídio concedidos pelo país exportador que causem dano à indústria doméstica. Todas essas medidas estão amparadas pelos acordos da Organização Mundial do Comércio e, desde que aplicadas respeitando-se os requisitos estabelecidos por essas regras, afiguram-se legítimas para deter a concorrência desleal.
Por isso, vale analisar cada uma das ações adotadas, caso a caso. Isso se aplica às medidas de defesa comercial, mas também às outras políticas. No caso do pacote recentemente anunciado pelo Governo Federal, por exemplo, uma das medidas é a cobrança do PIS e da COFINS sobre produtos importados, de forma a compensar a desoneração da folha de pagamento que foi oferecida a quinze setores industriais. Dependendo de como for aplicada, essa cobrança pode ser questionada, já que um dos princípios fundamentais das regras da OMC é o do “tratamento nacional”, que impede o tratamento diferenciado entre produtos nacionais e importados, com o objetivo de discriminar os últimos.
Cabe então perguntar o que justificaria o protecionismo, e mais importante ainda, se este compensa.
O paradigma clássico para a proteção comercial, que é o da preservação das indústrias nascentes, parece não se aplicar ao caso brasileiro. Aqui, a necessidade de proteção tem sido vista de forma mais ampla, tendo como principal justificativa a excessiva valorização do real. É verdade que a OMC precisará, em algum momento, tratar dessa questão cambial, pois ela coloca em risco todos os compromissos acordados naquela organização, ao tornar pouco realistas os tetos e alíquotas anteriormente negociados. Quando essa variação se deve a uma subvalorização proposital da moeda, por parte de alguns países, deveria ser impedida, por equivaler a um subsídio às exportações.
O protecionismo, no entanto, justificável ou não, é um tiro que pode sair pela culatra.
No plano internacional, certas medidas podem não apenas contribuir para uma perigosa escalada do protecionismo e retração do comércio internacional, com graves perdas econômicas, mas também tendem a provocar medidas recíprocas que prejudicariam diretamente os produtores nacionais. Um exemplo é a nova margem de preferência de 25% que o Governo Federal pretende dar às empresas nacionais nas compras governamentais – medida que pode gerar retaliações de outros países que decidam adotar o mesmo princípio, atrapalhando as empresas brasileiras que quiserem atuar nesses processos de compras no exterior.
Internamente, a proteção excessiva leva à perda de competitividade e à diminuição do bem-estar geral da população. O protecionismo pode estar atendendo aos anseios de apenas uma parte ineficiente do setor produtivo, em detrimento da sociedade – que arca com a inflação de preços – ou do setor produtivo como um todo. Vale lembrar que penalizar as importações pode causar um aumento no preço de insumos necessários à produção, o que torna a nossa economia menos competitiva também nas exportações. Seria um “tiro no pé” para um país que já exporta pouco – segundo levantamento recente da OMC, continuamos em 22º lugar entre os exportadores de mercadorias, com participação de apenas 1,4% das exportações mundiais.
Além disso, de nada adianta adotar medidas emergenciais sem se preocupar em consertar as graves deficiências estruturais que estão na raiz das dificuldades enfrentadas pela indústria. Por isso, é fundamental que exista uma política de desenvolvimento industrial clara, que venha acompanhada de ações para diminuir impostos, revitalizar a infraestrutura, tornar o crédito mais barato, reduzir o valor dos insumos – o Brasil tem a terceira tarifa de energia elétrica mais cara do mundo –, investir em educação e em capacitação de mão de obra, entre outros itens de uma lista já bem conhecida.
Sem isso, voltaremos a cometer velhos erros. Historicamente, o protecionismo atrasou o desenvolvimento tecnológico do País, pela reserva de informática dos anos 1970, e gerou uma indústria automobilística que ganhou a fama de produzir carroças, pelo menos até a abertura do mercado. No setor de brinquedos, o Brasil implantou salvaguarda na década de 1990 para proteger a indústria nacional da avalanche de produtos chineses extremamente baratos. No entanto, essa ação não foi acompanhada por um planejamento de longo prazo, perdendo-se a oportunidade de implementação de uma estratégia para que, durante a salvaguarda, as empresas brasileiras se preparassem para competir de igual para igual com as estrangeiras. Hoje, os brinquedos importados representam 70% do mercado doméstico e os empresários locais continuam reclamando da disputa desigual. O mesmo ocorre com o setor automobilístico, que, apesar da proteção de que gozou no passado, volta a demandar amparo. Nesse sentido, as recentes medidas anunciadas para o setor ao menos mostram uma preocupação em atrelar o desconto no IPI das montadoras a investimentos em pesquisa e inovação, no monitoramento da eficiência energética e emissões de gases dos veículos.
Logo, apenas limitar a concorrência não resolve o problema. Ao contrário, pode protelar decisões importantes, favorecer a acomodação e gerar estagnação. Eventuais medidas de proteção devem vir acompanhadas de ações consistentes para fomentar a competitividade, evitando-se o risco de ter premiada a ineficiência e consolidada a falta de competência. 

Publicado na Revista Jurídica Consulex em 01/05/2012

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Governança Global da Sustentabilidade - Artigo - Abril 2012

A importância da governança global
para o desenvolvimento sustentável
Eduardo Felipe P. Matias

Um dos dois principais temas da Rio+20, a “estrutura institucional para o desenvolvimento sustentável” é tão ou mais essencial do que a “economia verde” – o outro foco, mais badalado, dessa conferência. Alcançar um mundo mais sustentável passa por encontrar um modelo de organização que imprima eficiência às atividades promovidas pelas diversas instituições da sociedade global.
Para atingir esse objetivo, entretanto, o debate precisa ser mais matizado do que o que se viu até agora. Isso porque este tem se limitado a apenas alguns aspectos dessa estrutura institucional. A discussão na Rio+20 deve girar em torno de reformas nas entidades do sistema da ONU, como o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), o Conselho Social e Econômico (ECOSOC, na sigla em inglês) e a Comissão sobre Desenvolvimento Sustentável dessa organização. Ou, se ousar muito, deve entrar no mérito da criação de uma nova agência especializada de caráter abrangente, que sirva de “guarda-chuva” para os diversos acordos existentes, ou seja, uma “Organização Mundial do Meio Ambiente”, nos moldes da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Esse escopo precisa, no entanto, ser ampliado. Há algum tempo vem se dizendo que aplicar à análise da governança da sustentabilidade o repertório padrão das relações internacionais é uma abordagem para lá de incompleta. Levar em conta somente as negociações diplomáticas interestatais e entender os atores não estatais apenas como grupos de pressão que procuram influenciar os acordos internacionais é um equívoco.
Esses atores, na verdade, participam de um complexo sistema de governança global, que tem características peculiares e difere, por exemplo, do que seria um “governo mundial”. Autores como James Rosenau diferenciam esses dois conceitos, afirmando que, enquanto “governo” refere-se a instituições formais e, portanto, a estruturas, “governança” é uma função social ou um processo, e pode ser alcançada por meio de redes ou grupos de instituições, públicas ou privadas, em diversos níveis – subnacional, nacional, regional, internacional, sociedade civil, supranacional. Isso permitiria à sociedade global gozar dos benefícios do governo sem a existência de uma estrutura formal, o que resulta na ideia de “governance without government”.1
Tanto quanto o governo, a governança consiste em sistemas de regras ou mecanismos de direção nos quais a autoridade é exercida. Essa autoridade equivale a ser reconhecido como tendo o direito de emitir ordens que serão cumpridas por aqueles para os quais estão dirigidas. E esse reconhecimento pode se dar de diversas maneiras – às vezes, por meio de instrumentos formais, como um tratado, às vezes informalmente, como um conjunto de práticas costumeiras adotadas por um determinado grupo. Nesse sentido, muitos desses atores não estatais são o que Rosenau define como “esferas de autoridade”.
Logo, o aperfeiçoamento da arquitetura institucional para o desenvolvimento sustentável passa pela identificação dos atores que, por serem esferas de autoridade representativas, podem contribuir para a promoção da sustentabilidade.
Claro que os Estados ainda são peças muito relevantes desse quebra-cabeça, por sua capacidade praticamente inigualável de regular e incentivar comportamentos. Mas importam também unidades infraestatais, como as cidades, que têm tomado iniciativas como a formação de redes municipais para a governança do clima.
São também atores fundamentais as instituições internacionais focadas no meio ambiente – entre elas, aquelas do sistema da ONU, razão pela qual o debate que terá lugar na Rio+20 é importante, apesar de seu escopo limitado. Porém, têm um papel significativo também aquelas organizações internacionais que, embora não tenham caráter essencialmente ambiental, possuem grande poder de influência nessa área, como o Banco Mundial – com seu poder de condicionar financiamentos a práticas sustentáveis – e a OMC – cujo mandato amplo lhe permite interferir em assuntos relacionados ao meio ambiente.
Por fim, há também os atores transnacionais, como as ONGs e as empresas que, deliberadamente, tratam de problemas relacionados à sustentabilidade mesmo sem serem forçados, persuadidos ou financiados pelos Estados ou outras agências públicas.2 Esses atores são, muitas vezes, responsáveis por iniciativas que têm grande peso na promoção da sustentabilidade, como sistemas de gestão ambiental, códigos de conduta, indicadores e relatórios socioambientais, certificações diversas etc.
Se analisarmos com atenção, perceberemos que diversas funções de governança ambiental – definição de agenda, monitoramento, criação de regras, enforcement, financiamento, entre outras – são exercidas, dependendo do caso, por vários desses atores.
A governança global é, portanto, por sua própria natureza, descentralizada. Ainda assim, as posições sobre a melhor arquitetura para a regulação ambiental se dividem entre aqueles que prefeririam apostar em uma ordem mais fragmentada e flexível e aqueles que acreditam que esta deva ser unificada. Para estes últimos, a sobreposição de responsabilidades e tarefas entre diferentes atores na governança ambiental internacional seria algo negativo – o que os levaria a preferir soluções como a criação de uma “OMC do Meio Ambiente”.
Porém, autores como Peter Haas observam que esse impulso até natural na direção da centralização vai contra o que pensam “os mais sofisticados teóricos organizacionais sobre o melhor design institucional para tratar problemas complexos, como os assuntos ambientais globais”. A fragmentação da governança global agilizaria os processos e facilitaria a inovação, e algum grau de redundância seria na verdade desejável, por garantir uma espécie de “seguro” contra o declínio de qualquer instituição internacional, de modo que a eliminação ou inatividade de uma delas não ponha em risco toda a rede. Seria um erro concluir que uma governança descentralizada é, necessariamente, incoerente. Ainda que essas diversas iniciativas possam, muitas vezes, parecer desconexas, é possível tirar vantagem das sinergias entre redes de atores operando em diferentes níveis.3
Logo, assegurar o desenvolvimento sustentável é missão para a governança global. O aperfeiçoamento das instituições internacionais existentes ou a criação de uma organização ambiental com vocação universal podem representar grandes contribuições para esse sistema. No entanto, não devemos esquecer que a fragmentação da governança global é um fato, e pode até ser uma vantagem. Entender essa realidade e aprender como lidar com ela e tirar proveito de suas características é a difícil missão de todos aqueles que pretendem ajudar a construir, no tempo necessário, o complexo edifício da sustentabilidade mundial.


NOTAS
[1]   Cf. ROSENAU, James N. Governing the ungovernable: The challenge of a global disaggregation of authority. Regulation & Governance; Mar. 2007, V. 1 Issue 1, p. 88-97.
2   Cf. PATTBERG, Philipp. Beyond the public and private divide: remapping transnational climate governance in the 21st century. International Environmental Agreements: Politics, Law & Economics; Dec. 2008, V. 8 Issue 4, p. 367-388.
3   HAAS, Peter M. Addressing the Global Governance Deficit. Global Environmental Politics. Nov. 2004, V. 4 Issue 4, p. 1-15.


Artigo publicado na Revista Jurídica Consulex em 1 de abril de 2012

Economia verde - Artigo - Março 2012

O Acordo de Durban e as expectativas para a Rio+20
Eduardo Felipe P. Matias

No final do ano passado, as partes signatárias da Convenção Quadro sobre as Mudanças Climáticas da ONU realizaram a sua 17ª Conferência na cidade de Durban, na África do Sul (COP-17). Já foi dito, neste mesmo espaço1, que essa reunião poderia ser uma simples parada estratégica para a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), que será realizada no Rio de Janeiro, em junho deste ano. Pois bem, parece que pode acontecer exatamente o contrário, e a Rio+20 transformar-se em mera escala do processo mais ambicioso, iniciado em Durban. Apesar de esses dois encontros terem pautas distintas, o fracasso da Rio+20 pode jogar um balde de água fria na possibilidade de um acordo global que, em Durban, ganhou novas perspectivas. E o sucesso da Conferência no Rio de Janeiro, principalmente no que se refere à convicção sobre as virtudes de uma “economia verde”, pode garantir que os importantes compromissos assumidos na cidade sul-africana não percam força.
É verdade que, de resultados práticos, a COP-17 trouxe pouco. Foram feitos, por exemplo, anúncios de investimentos no Fundo Verde Climático, criado na COP-16, em Cancún, para combater as emissões de gases de efeito estufa e promover ações de adaptação à mudança climática nos países em desenvolvimento. Outro resultado de aplicação imediata, mas pouco promissor, foi a decisão de se adotar um segundo período de compromisso para o Protocolo de Kyoto, de 1997, que, caso contrário, acabaria em 2012. Resolveu-se que essa nova fase se estenderá até 2017 ou 2020. Porém, o Protocolo de Kyoto já era considerado um compromisso esvaziado e insuficiente para deter as mudanças climáticas, e não apenas por obrigar somente os países desenvolvidos ou pela timidez das metas assumidas – seu objetivo era reduzir as emissões em 5,2% em relação às de 1990. A ausência dos Estados Unidos e dos países em desenvolvimento fazia do Protocolo um instrumento bem intencionado, mas, reconhecidamente, incapaz de vencer por si só a luta contra as mudanças climáticas.
Pois bem, o que já não era muito bom ficou pior. Em Durban, o Japão, a Rússia e o Canadá resolveram não participar da nova fase do Protocolo de Kyoto, enfraquecendo ainda mais o acordo. Claro que, nesse caso, vale o princípio do “ruim com ele, pior sem ele”. Pelo menos a COP-17 evitou o fim do Protocolo, que teria efeitos sobre os mercados de carbono em todo o mundo. Daí até sair da África do Sul celebrando uma grande vitória, entretanto, há uma longa distância.
Ainda assim, com graus diferentes de entusiasmo, os representantes dos países que participaram da COP-17 foram unânimes em comemorar os resultados obtidos ao final do encontro, por muitos deles classificados como “históricos”. Será que a reação dos participantes do fórum esteve desconectada com a realidade, ou foi ensaiada para ocultar o fracasso coletivo?
Na realidade, houve, sim, um avanço, ainda que apenas no campo das intenções. O que está sendo comemorado é o consenso sobre a celebração de um futuro acordo global, com metas obrigatórias de redução de emissões de gases de efeito estufa para todos os países.
Esse entendimento, é claro, não foi tarefa fácil. Estados Unidos e China, os maiores emissores de gases de efeito estufa, sempre usaram um ao outro como álibi para se recusarem a assumir obrigações na área ambiental – a não participação chinesa foi utilizada, por exemplo, como pretexto pelo Congresso americano para rejeitar o Protocolo de Kyoto. Sempre pareceu que, para ambos, o melhor acordo sempre foi não ter acordo, desde que conseguissem transferir para o outro, ou para terceiros, a responsabilidade pelos seguidos fracassos. Assim, a inoperância da governança global do clima se tornou algo bastante conveniente para essas duas potências, desobrigando-as de compromissos que afetariam sua produção industrial e seu ritmo de crescimento econômico.
No entanto, quando os países em desenvolvimento – que, historicamente, sempre se apoiaram no princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas para evitar a adoção de metas de redução de emissões – mostraram que, ao lado da União Europeia, estavam dispostos a chegar a um acordo, Estados Unidos e China viram-se contra a parede. Para estes, restava apenas aceitar o acordo ou assumir o ônus do fracasso. Escolheram a primeira alternativa.
Logo, do ponto de vista diplomático, a Conferência pode ser encarada como um sucesso. Essa unanimidade, até a COP-17, era algo que nunca havia ocorrido – talvez daí a utilização do adjetivo “histórico”.
Porém, do ponto de vista ambiental, o problema são as datas para que esse acordo global se concretize: o tratado deverá ser assinado até 2015, para entrar em vigor em 2020. Assim, o resultado prático será o de empurrar com a barriga por quase 10 anos as ações efetivas. Nos próximos quatro anos, os países terão que chegar a um acordo. Depois disso, vem a outra parte do processo, igualmente difícil. Entre 2015 e 2020, os países devem ratificar internamente o acordo. Isso significa que Congressos e opinião pública de 200 nações com culturas, interesses e circunstâncias diferentes devem concordar em adotar as metas convencionadas. E, para não variar, as maiores dificuldades devem vir dos suspeitos de sempre.
Boa parte dos americanos simplesmente não acredita no aquecimento global. Durante as primárias republicanas, alguns candidatos fizeram da negação das evidências científicas nesse sentido uma forma de atrair a simpatia do eleitorado. Deu certo. O único que contrariou esse pensamento, Jon Huntsman, justificou-se assim: “Vocês podem me chamar de louco, mas eu acredito nas mudanças climáticas”. Já está fora do jogo por falta de apoio. Portanto, em um governo republicano, há poucas chances de que os Estados Unidos assumam compromissos mais significativos com o meio ambiente.
Além disso, se até 2015 a situação econômica não tiver melhorado sensivelmente, mesmo para o Presidente Obama, em um eventual segundo mandato, será difícil convencer a população a aceitar medidas que, na cabeça de alguns, poderiam prejudicar a competitividade do país e afetar o nível de emprego. O mesmo problema pode enfrentar a União Europeia, ainda que esta pareça mais propensa a enxergar o mundo sob a óptica do desenvolvimento sustentável. E a China ainda precisa ser totalmente convencida de que adotar metas de redução de emissões mais severas não a impedirá de seguir se desenvolvendo “em ritmo chinês”.
Logo, o sucesso do acordo está diretamente relacionado à evolução do quadro econômico internacional. Mais que isso, está ligado ao convencimento, principalmente por parte desses países-chave no controle das mudanças climáticas, de que uma economia verde pode ser não apenas a saída para a crise internacional, mas também o modelo que assegurará a prosperidade futura de todos.  E a “economia verde em um contexto de desenvolvimento sustentável e de erradicação da pobreza” é exatamente um dos temas principais da Rio+20, na qual espera-se que, diferentemente da COP-17, da qual participaram apenas os delegados dos países, compareça um bom número de chefes de Estado, que terão o objetivo de “renovar o compromisso político entre as nações”, como prevê Draft Zero da Conferência. Vamos torcer, então, para que a Rio+20 traga-nos boas respostas, que contribuam para que as boas intenções de Durban tornem-se mais do que apenas isso: boas intenções.

NOTA
1 Cf. De Cancún ao Rio, com escala em Durban (RJC nº 337, p. 22-23).


Publicado na edição nº 363 da Revista Jurídica Consulex, de 1° de março.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Retrospectiva 2011 - Inverno econômico e primavera política marcaram o cenário internacional

por Eduardo Felipe P. Matias


Em um mundo que dá a impressão de girar cada vez mais rápido, ano a ano, 2011 pareceu ter ainda mais revoluções do que o normal. No plano internacional, foi um ano de prolongado inverno econômico, principalmente na Europa, mas foi também o ano de uma inédita primavera política no mundo árabe.

Muitos acontecimentos mereceram destaque no planeta que, em 2011, chegou a sete bilhões de habitantes. Entre os eventos que marcaram o ano, está o fim da Guerra do Iraque, iniciada em 2003 pelos Estados Unidos, sob o pretexto de que o país de Saddam Hussein contaria com armas de destruição em massa – o que nunca foi comprovado. A retirada das tropas americanas atuantes no Iraque, deixando para trás centenas de milhares de mortos e custo de quase um trilhão de dólares, foi anunciada pelo presidente norte-americano em setembro.

Porém, o anúncio de Barack Obama que chamou mais a atenção neste ano ocorreu em maio, quando este revelou a morte de Osama Bin Laden, que estava escondido no Paquistão, em uma mansão próxima à capital Islamabad. Era de se esperar que a invasão do território de outro país, com o propósito de assassinar uma pessoa, trouxesse maiores discussões sobre o evidente descumprimento das normas de direito internacional. No entanto, aparentemente a atrocidade cometida por Bin Laden, idealizador do atentado de 11 de setembro de 2001 contra as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, o tornaram exceção para quase toda a comunidade internacional no que se refere à condenação a violações da soberania e dos direitos humanos. Claro que, ainda que houvesse o desejo de punir a ação dos Estados Unidos, a forma de organização da sociedade internacional não ajudaria, uma vez que o poder de veto desse país no Conselho de Segurança da ONU o torna praticamente imune a sanções dessa organização. Aliás, a reforma do Conselho de Segurança, um dos temas “quentes” de 2010, foi deixada um pouco de lado em 2011.

Outra discussão que perdeu força foi aquela sobre o uso indevido da energia nuclear – assunto dominante em 2010, ano de revisão do Tratado de Não Proliferação Nuclear e período em que o Irã e seu programa atômico foram foco de atenção. A exceção foi a incerteza trazida, já em dezembro, pela morte de Kim Jong-il, líder da Coreia do Norte desde 1994, sucedido por seu filho, Kim Jung-um, que ninguém sabe ao certo que papel terá e como lidará com o arsenal construído por seu pai, cujas atitudes foram fonte de constantes tensões diplomáticas na região.

A ameaça nuclear, entretanto, se manifestou em 2011 de outra forma. Neste ano, ela não veio de um dos países considerados “párias” (“rogue states”) pelos Estados Unidos, mas sim do Japão e do uso pacífico desse tipo de energia. Um terremoto de magnitude 8,9 graus na escala Richter – o pior de todos os tempos já registrado no Japão – gerou um tsunami que destruiu parte das cidades costeiras do país, deixando mais de 20 mil mortos e danificando a central de Fukushima, causando o acidente nuclear que foi um dos fatos mais marcantes do ano. A reconstrução das regiões afetadas pela catástrofe custou algo próximo de 300 bilhões de dólares ao Japão, o que dificultou ainda mais a esse país a dura missão de sair da crise em que o mundo patina ao menos desde 2008.

Europa em crise
Por falar em crise, nenhuma região do mundo despertou maior preocupação neste ano na área econômica do que a Europa, com sérios problemas fiscais. Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha foram apelidados de grupo dos PIIGS, sigla que lembra a palavra “porcos” em inglês e que mostra bem o lamaçal em que se meteram e o sentimento de desprezo que provocaram ao se endividarem excessivamente, o que levou aos elevados déficits orçamentários atuais – vale lembrar que o Tratado de Maastricht, de 1992, estabeleceu um limite de 60% na proporção entre endividamento e PIB dos países da zona do euro.

O ano terminou com uma reunião de cúpula dos líderes da União Europeia (UE) para tentar reverter a crise do euro e consertar o erro que foi criar uma união monetária sem a correspondente união fiscal. Nessa reunião, sob a liderança da chanceler alemã Angela Merkel e do presidente francês Nicolas Sarkozy, 26 dos 27 países da UE – a exceção foi o Reino Unido – decidiram conceder um empréstimo de 200 bilhões de dólares para o Fundo Monetário Internacional combater a crise, e chegaram a um acordo sobre a necessidade de se estabelecer um pacto fiscal, com normas orçamentárias que seriam inseridas nas Constituições nacionais e com sanções automáticas para os países que viessem a descumprir as metas de endividamento.

As regras desse novo acordo intergovernamental serão discutidas em março de 2012, e não se sabe se conflitarão com o Tratado de Lisboa e demais normas da UE. Mais uma vez, a Europa deverá mergulhar em um debate sobre a transferência de soberania dos Estados membros para Bruxelas, tendo em vista que a interferência da Comissão Europeia sobre os orçamentos nacionais será provavelmente combatida por aqueles que questionam a perda de autonomia dos governos de seus países perante a burocracia da UE. O ano que vem promete discussões intensas sobre essas questões constitucionais, que podem unir a Europa, aprofundando seu processo de integração, ou rachá-la de vez.

A crise, como não podia deixar de ser, teve reflexos em diversas outras áreas, como o livre comércio e o meio ambiente.

Comércio fechado
Com relação ao livre comércio, a moribunda Rodada Doha, lançada em 2001 como uma “rodada do desenvolvimento” para provocar uma nova onda de liberalização, pelo visto, morreu de vez. Foi o que reconheceram em Genebra, no mês de dezembro, os representantes dos países membros na reunião ministerial da Organização Mundial de Comércio – organização que, em 2011, enfim pôde anunciar a admissão da Rússia, depois de longas negociações.

Assim, neste ano, em vez de mais abertura comercial, o que se viu foi o aumento do protecionismo – calcula-se que 3 barreiras, em média, vêm sendo criadas por dia no mundo. O Mercosul não fugiu a essa regra. Mais uma vez, andou de lado neste ano, com pouca liberalização comercial e proliferação de medidas de defesa comercial. A Cúpula do Mercosul, ocorrida em dezembro, foi marcada por reclamações dos países membros – principalmente Paraguai e Uruguai – contra as barreiras que têm surgindo de forma acelerada, prejudicando o comércio intrarregional. E, no que se refere ao comércio com os demais países, uma das poucas decisões do encontro foi a de aumentar a Tarifa Externa Comum do bloco para uma série de produtos.

Do lado da liberalização, o Mercosul continuou demonstrando dificuldades em alcançar o consenso necessário para a assinatura de acordos comerciais com outros países – fora da América do Sul, só Israel e Egito haviam celebrado acordos com o bloco até então. Nessa última Cúpula, aprovou-se um acordo comercial com a Palestina, e foi tudo. A negociação de um acordo de livre comércio com a UE, que vem se arrastando há anos, foi prejudicada ainda mais pela crise econômica naquela região.

Por fim, quanto à expansão do Mercosul, Equador e Bolívia manifestaram interesse em passarem de Estados associados a membros efetivos do bloco. Não custa lembrar que a Venezuela continua esperando o Congresso paraguaio aprovar a sua entrada, e lá se vão 3 anos.

Mudanças climáticas
A crise teve efeitos, ainda, sobre as negociações para o combate às mudanças climáticas.
Como ocorre todos os anos, as partes signatárias da Convenção Quadro sobre as Mudanças Climáticas da ONU – assinada na Conferência do Rio de 1992 com o objetivo de combater o aquecimento global decorrente do excesso de gases de efeito estufa na atmosfera – realizam uma de suas conferências, conhecidas como COPs (sigla para a expressão em inglês “Conference of Parties”).

Em 2011, foi realizada a COP-17 na cidade de Durban, na África do Sul. Nessa Conferência, decidiu-se adotar um segundo período de compromisso para o Protocolo de Kyoto de 1997 que, caso contrário, acabaria em 2012. Essa fase deverá ir até 2017 ou 2020, prorrogando o acordo que tinha o objetivo de reduzir as emissões em 5,2% em relação às de 1990, mas que se aplicava somente a alguns países industrializados e que já contava com os Estados Unidos como principal exceção. Para completar, Japão, Rússia e Canadá resolveram não participar dessa nova fase, o que enfraquece ainda mais o Protocolo.

Foram feitos anúncios de investimento no Fundo Verde Climático, criado na COP-16, em Cancun, onde se decidiu que os países desenvolvidos deverão contribuir com US$ 100 bilhões até 2020 para que os países em desenvolvimento possam reduzir suas emissões e adaptar-se às mudanças do clima.

E, naquele que foi considerado o maior resultado da Conferência, países desenvolvidos e países em desenvolvimento chegaram a um consenso de que um novo acordo, no qual todos eles assumirão metas obrigatórias de redução de emissões, deverá ser adotado. O problema são as datas para que isso ocorra: o tratado deverá ser assinado até 2015, para entrar em vigor em 2020 – assim os países terão cinco anos para ratificá-lo. Logo, embora no plano retórico Durban tenha trazido avanços, o resultado prático será o de empurrar com a barriga por quase 10 anos a ação efetiva de combate às mudanças climáticas.

O manifestante
Embora todos os acontecimentos acima tenham sido importantes, o ano de 2011 ficará marcado mesmo pelos protestos que se espalharam por todo o planeta. Não é para menos que a revista norte-americana Time, na hora de publicar a sua tradicional capa com a “personalidade do ano”, elegeu “o manifestante”, representado por uma pessoa com o rosto coberto – assim mesmo, anônimo, como de fato o foram os manifestantes em diversos cantos do mundo. Isso porque as revoluções que ocorreram no Oriente Médio e no norte da África e os protestos em outras partes do planeta diferem das revoltas tradicionais. Em sua maioria, elas não se originam na atuação de lideranças conhecidas de oposição, mas de movimentos populares que se auto-organizam.

A chamada Primavera Árabe se iniciou na Tunísia, quando o desempregado Mohamed Bouazizi ateou fogo em seu próprio corpo após ter a banca de legumes que garantia a sua subsistência confiscada pela polícia. Os protestos contra o presidente tunisiano, Zine El-Abidine Ben Ali, se intensificaram com as revelações do Wikileaks – organização não governamental que possui um site onde publica documentos, fotos e informações confidenciais vazadas de governos ou empresas. Entre as diversas informações por este divulgadas, algumas se referiam a negócios escusos da família de Ben Ali, o que ajudou a inflamar ainda mais a população tunisiana. Em 14 de janeiro – menos de um mês depois da auto-imolação de Bouazizi – o ditador Ben Ali renunciou. Em outubro, os tunisianos foram às urnas para participar da primeira eleição livre da história do país e escolher uma Assembleia Constituinte. O vencedor foi o partido islâmico moderado Ennahda, que conseguiu mais de 41% dos votos.

Também não resistiu mais de um mês outra ditadura, a do egípcio Hosni Mubarak, que após 30 anos no poder renunciou depois de apenas 18 dias de protestos, para satisfação da multidão reunida na Praça Tahrir, no centro do Cairo, lugar onde se concentraram as principais manifestações naquele país. Agora, os militares que assumiram o poder com a saída de Mubarak enfrentam protestos para acelerar a transição para um governo civil.
Inspirados pelo êxito das rebeliões na Tunísia e no Egito, os protestos se espalharam pelo mundo árabe.

Na Líbia, o ditador Muamar Kadafi, há 42 anos no poder, foi morto em outubro após uma sangrenta guerra civil, com cerca de 30 mil mortos, na qual a OTAN chegou a intervir. O quarto e último ditador a ser derrubado foi o do Iêmen. Ali Abdullah Saleh sobreviveu a um atentado a bomba no palácio presidencial e ficou três meses afastado do cargo, recuperando-se das queimaduras. Em 23 de novembro, Saleh anunciou seu afastamento pela televisão, terminando um mandato de 35 anos e passando o poder a seu vice, que deverá convocar eleições em três meses. Nesses dois países, o clima político ainda é conturbado, assim como ocorre na Síria e no Bahrein.

As manifestações não se limitaram, contudo, a países pobres ou em desenvolvimento. Na Espanha, o movimento dos “indignados”, iniciado em 15 de maio – o que faz com que este seja também conhecido como 15-M – ganhou força, ocupou a Puerta del Sol, em Madri, e tomou conta de outras praças por todo o país, a fim de exigir o aperfeiçoamento do sistema democrático. Nos Estados Unidos, o movimento “Occupy Wall Street” começou em Nova York e se espalhou para outras cidades norteamericanas, sob o lema de que os 99% da população não estão representados pelo 1% que comanda o país em benefício próprio. Vários países tiveram suas versões locais desses movimentos. A última onda de manifestações atingiu a Rússia, em dezembro, após suspeitas de fraudes nas eleições parlamentares, que levaram a população às ruas para protestar contra o partido de Vladimir Putin.

Na maioria dessas manifestações, tem-se empregado as redes sociais na convocação de protestos e no intercâmbio de informações. Isso é notado, por exemplo, nas páginas do site de relacionamento Facebook, cujos murais são utilizados para organizar manifestações ou para “postar” fotos e vídeos da repressão – fotos e vídeos esses que, feitos por meio de câmeras de telefones celulares pelos próprios manifestantes, alimentam os meios de comunicação tradicionais, amplificando ainda mais o seu efeito.

Claro que os fatores que geraram revoltas – entre eles, a insatisfação da juventude, sem emprego e sem perspectivas, e a vontade de se livrar de regimes opressores, corruptos ou simplesmente incompetentes – fazem parte do mundo real. Também ocorreram no mundo real as manifestações que tomaram as ruas. No entanto, as ferramentas que permitiram que essas pessoas espalhassem a sua mensagem e se organizassem são virtuais. E, graças a elas, essa organização se deu de forma rápida como nunca se viu.

Embora os países árabes ainda vivam momentos de instabilidade política, a derrubada de alguns ditadores que há décadas oprimiam seus povos é uma das gratas surpresas de 2011. O desejo de mudança foi alimentado pelo maior acesso a outras culturas e estilos de vida, reflexo da globalização e da revolução tecnológica. Sem esta última e as ferramentas digitais por ela trazidas, a mudança daqueles regimes seria uma difícil missão. Se, no campo econômico, a globalização tem sido bastante questionada e passa por momentos difíceis, no campo político, graças à Primavera Árabe, a globalização parece ter começado, finalmente, a mostrar que pode nos trazer algo de bom.

Publicado no site Consultor Jurídico em 2 de janeiro de 2011 (http://www.conjur.com.br/2012-jan-02/inverno-economico-primavera-politica-marcaram-cenario-internacional)