quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Artigo - Revista Exame CEO - Agosto de 2013

Comendo poeira

Era uma vez uma economia internacional pujante, em que navios singravam os mares levando mercadorias de um lado a outro do planeta e novas formas de se comunicar permitiam rápido contato com locais distantes. Essa é uma história real. Aconteceu no período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, quando barcos a vapor, ferrovias e telégrafos possibilitaram que o mundo alcançasse uma integração econômica até então sem igual. A globalização, no entanto, é outra história. E o Brasil parece ainda não ter percebido isso.
A diferença entre aquela época e a que vivemos hoje está na revolução tecnológica. Inovações nas comunicações e transportes permitem que as empresas fragmentem sua produção como nunca se viu, passando a comprar ou produzir seus insumos onde isto for mais eficiente, formando cadeias produtivas globais.
Para participar dessas cadeias, além de aperfeiçoar suas instituições, capital humano e infraestrutura, um país deve oferecer garantias de que empresas que optarem por alocar parte da produção em seu território serão bem tratadas e que poderão escoá-la de forma favorável. Em outras palavras, deve se sair bem em duas vertentes, a do investimento externo direto e a do comércio internacional, que foram acompanhadas de uma inédita proliferação de acordos e organizações internacionais – uma verdadeira globalização jurídica, que o Brasil vem tendo dificuldade de acompanhar.
Na vertente do comércio internacional, o Brasil tem se tornado mais protecionista no plano interno e, no plano externo, assume postura tímida na adesão a novos acordos de livre comércio.
O protecionismo se agravou mundialmente nos últimos anos, somando-se à crise para derrubar o comércio internacional. Dados recentes da Organização Mundial do Comércio (OMC) mostram que 2012 foi o segundo pior ano para esse comércio em mais de três décadas – superado, apenas, por 2009. O Brasil que, desde novembro de 2008, adotou 80 medidas de proteção – menos que outros países, e muitas delas legítimas, é preciso reconhecer – não fugiu a essa regra. Nossas importações caíram 2% em 2012. Penalizar as importações, é bom lembrar, pode causar um aumento no preço de insumos necessários à produção, o que torna a nossa economia menos competitiva também ao vender para o exterior. Isso não é nada bom para um país cujas exportações representam apenas 1,3% do total mundial e caíram 5% em 2012.
Nossa posição acanhada no comércio internacional – 22º lugar no ranking global tanto das importações quanto das exportações – se reflete, é lógico, em números igualmente inexpressivos no intercâmbio de partes e peças intermediárias, que é o que mede a participação de um país nas cadeias globais de valor.
Embora a redução nas exportações possa ser atribuída à crise na Europa e à queda nos preços das commodities, certamente o Brasil também é prejudicado pelos revezes sofridos nos dois processos de liberalização em que apostou suas fichas.
O primeiro é a Rodada Doha, que se arrasta há quase doze anos. Pode até ser que a eleição de Roberto Azevêdo para a direção da OMC dê novo fôlego a essa negociação multilateral, nosso “first best”, mas as dificuldades enfrentadas até agora recomendam que o Brasil, desta vez, pense em um plano B.
O segundo é o processo de integração regional do Mercosul. Se este foi, em seus primeiros anos, fator de inserção competitiva do Brasil na economia mundial, mesmo o intercâmbio comercial intrabloco, que chegou a representar 17% do total da região, retrocedeu para 12%. E, o que é pior, por se tratar de uma união aduaneira e exigir o consenso de seus membros para fazer concessões tarifárias, o Mercosul tem dificultado a celebração de novos acordos de livre comércio. Desde 1991 – ano de criação do bloco – foram apenas três acordos assinados, com Israel, Palestina e Egito, sendo que apenas o primeiro está em vigor.
Enquanto isso, há uma corrida mundial para a criação de novos acordos bilaterais e plurilaterais. Na última década, mais de 200 deles foram celebrados – vários por países latino-americanos, como o Chile, com 22 acordos, o Peru com 12 e a Colômbia com 11. Coincidentemente ou não, países com mais desses acordos ficaram acima da média de crescimento do comércio internacional em 2012.
Nossas empresas, é claro, tendem a perder espaço nesses mercados que estão se integrando. Se até por esse raciocínio, fundado no comércio exterior “à la século XX”, é fácil perceber como isso nos prejudica, o dano fica mais evidente quando se nota que esses novos acordos vão além da simples redução de tarifas. Eles estabelecem regras em propriedade intelectual, movimentação de capitais e outros temas, que podem vir a se tornar padrão mundial sem que o Brasil tenha participado de sua elaboração.
Esses acordos se somam à ampla rede de proteção que ampara a outra vertente associada às cadeias produtivas globais, que é a do investimento externo direto. Esta já contava com mais de 2500 tratados bilaterais de investimento (TBI). Aqui, mais uma vez, outras nações em desenvolvimento estão à frente do Brasil, caso dos demais BRICs – a China possui 90 desses acordos, a Rússia 50 e a Índia 61 – e de países do nosso continente – o Chile tem 53, o Peru 30 e o México 23, por exemplo. O Brasil, que hesita também em aderir a outros instrumentos, como aos acordos contra a bitributação, assinou apenas 15 TBI – que ajudariam a atrair investimentos para nosso território, assim como a proteger os investimentos brasileiros no exterior. E, até hoje, não ratificou nenhum deles.
Porém, seu formidável mercado interno faz que o Brasil se mantenha nos primeiros lugares do ranking de atração de investimentos estrangeiros – passou da 5ª para a 4ª posição, apesar da recém-divulgada queda de 2% desses investimentos em 2012 em relação ao ano anterior. E diversas empresas brasileiras têm procurado se internacionalizar – o estoque de investimentos brasileiros no exterior já alcança US$ 230 bilhões. Seriam esses dados ainda mais favoráveis caso o Brasil aderisse a mais acordos internacionais? É muito provável.
O fato é que poucas de nossas empresas estão integradas às cadeias globais de fornecimento. E as políticas de proteção do mercado interno e de imposição de exigências de conteúdo local que o Brasil vem adotando vão no sentido contrário ao do sistema de produção mundial fragmentado e globalizado.

É verdade que tanto a abertura comercial irrestrita quanto a movimentação de capitais desenfreada podem ter efeitos negativos, como mostrou a crise de 2008. Mas isolar-se é a pior atitude. Entender corretamente a globalização e, principalmente, a globalização jurídica é essencial para que o Brasil não fique de fora das cadeias produtivas globais, o que pode levar a perda de competitividade e diminuição do bem-estar da população. Nosso repertório de acordos internacionais é inadequado para competir na economia globalizada. Estamos correndo descalços e com uma roupa pesada em uma faixa esburacada da pista. Se não tomarmos cuidado, os demais países nos deixarão para trás, comendo poeira.

Publicado na Revista Exame CEO em Agosto de 2013, p. 110 a 113.