A nova governança global
Com o poder do Estado diluído pela globalização, a agenda do crescimento sustentável depende cada vez mais da atuação de outros níveis de influência, como as empresas transnacionais, as organizações não governamentais e os blocos regionais de países, e de ações e coalizões que promovam um ciclo virtuoso de sustentabilidade
Eduardo Felipe Matias
Em 2012, a cidade do Rio de Janeiro vai sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Para que o encontro traga resultados positivos, alguns problemas precisam ser superados. O primeiro deles é que o malabarismo diplomático necessário para chegar a um consenso em negociações multilaterais envolvendo quase 200 governos nacionais — nas quais a discordância de um único país pode impedir o acordo — costuma resultar em textos vagos e pouco efetivos. Logo, para os que acreditam que a Rio+20 deveria gerar um tratado que estabeleça obrigações a todos os países, impondo mecanismos de fiscalização de seu cumprimento e sanções para os que o desrespeitarem, as notícias não são boas. Esse tipo de acordo provavelmente não virá durante a conferência. E, se viesse, dificilmente seria ratificado por todos os países.
O segundo problema é a definição dos objetivos do encontro. Muito se tem falado sobre metas de redução de emissões, mas pouco sobre como alcançá-las. Na formação do preço dos produtos e dos serviços, o livre mercado não considera os custos sociais e ambientais das emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa na atmosfera. Se considerasse, forneceria aos produtores e consumidores sinais claros que os induziriam a optar por produtos baseados em tecnologias de baixo carbono. Sem esses sinais, o que se tem é um círculo vicioso de produção e consumo insustentáveis. Reverter esse quadro é uma condição essencial para o desenvolvimento de uma “economia verde”, como a Rio+20 pretende discutir.
A atribuição de um preço ao carbono pode ocorrer de diversas maneiras, tanto por meio de mecanismos de comércio de licenças de emissões quanto pela criação de impostos. Essas medidas não agradam a alguns países poluidores, o que dificulta sua aplicação universal. Por outro lado, governos que as adotem individualmente correm o risco de ser acusados de prejudicar a competitividade nacional. Como resolver esse impasse?
A resposta está relacionada à estrutura institucional para promover o desenvolvimento sustentável, um dos focos da Rio+20. A globalização diluiu o poder entre diversos atores que rivalizam e interagem com os Estados, compondo o complexo sistema chamado de “governança global”. Nele, importam os governos nacionais, mas têm papel relevante também as empresas transnacionais, as organizações não governamentais, os municípios, os blocos regionais e vários outros diferentes níveis de autoridade com capacidade de emitir regras que são seguidas por seus membros, muitas vezes voluntariamente.
Coalizões pela sustentabilidade
Para levar adiante um plano de precificação do carbono — ou outra medida que leve a um corte mais significativo de emissões —, é possível que tenhamos de nos valer de outros níveis globais de autoridade, como é o caso de arranjos abrangendo um grupo reduzido de países, a exemplo do G20, ou os acordos de integração regional. É inevitável que, para não perder competitividade, esse grupo adote algum tipo de ajuste tarifário para as importações dos demais países. Internamente, isso garantiria o apoio dos que temem que a política de redução de emissões afete sua renda e seu emprego. E, no plano internacional, essa iniciativa teria o potencial de provocar um efeito dominó: empresas de países fora desse acordo poderiam perder mercado, passando a pressionar seus governos a aderir às metas de redução de emissões, o que provocaria o ingresso de novos países no acordo ou a criação de acordos semelhantes. Uma vez que esse potencial estaria diretamente relacionado à magnitude desses ajustes tarifários, algum tipo de acerto teria de ser feito envolvendo a Organização Mundial do Comércio, a quem cabe julgar se essas barreiras não causam um protecionismo indevido.
Essa ideia se aplica também às empresas. As que estão na vanguarda do movimento pela sustentabilidade devem se unir e pressionar os governos para que lhes assegurem condições para avançar rumo a modelos de negócios mais sustentáveis, sem perder sua capacidade de competir. Governos comprometidos com o desenvolvimento sustentável, por sua vez, devem oferecer vantagens a negócios com base em tecnologias de baixo carbono, estimulando um número cada vez maior de empresas a se mover nessa direção e permitindo que a balança comece a pender para o lado de políticas mais agressivas de redução de emissões.
Esses são apenas alguns exemplos de ações que criariam um ciclo virtuoso do desenvolvimento sustentável, para o qual a Rio+20 poderia contribuir. Aí surge o terceiro problema a ser enfrentado na conferência: a definição de um foco. Este não deveria se concentrar na ação direta dos governos nacionais, mas na indução e na regulação dos comportamentos dos outros integrantes da sociedade global por meio de incentivos e controles adequados.
Claro que essas ações podem levar tempo para surtir efeito, razão pela qual o foco das discussões deve ir além. Evitar as mudanças climáticas exige transformações profundas e rápidas na matriz energética, nos transportes e nos hábitos mundiais, um “tudo ao mesmo tempo agora” improvável que nos leva a refletir sobre o que fazer caso a redução das emissões não ocorra em tempo suficiente. Há três ações possíveis e complementares: inovação, geoengenharia e adaptação.
O caminho da inovação
A substituição do petróleo e do carvão por fontes de energia renováveis é complicada e cara. Seu sucesso depende, em grande parte, de inovações que aperfeiçoem e barateiem as tecnologias existentes, e talvez só seja possível com a invenção de novas tecnologias, radicalmente diferentes das utilizadas hoje. Por esse motivo, os governos devem investir pesado em pesquisa e desenvolvimento, agindo de forma coordenada e envolvendo as empresas nesse esforço.
Tecnologias mais em conta facilitam a vida dos governos que desejam aprovar cortes de emissões, ao tornarem essas medidas mais palatáveis. É preciso considerar, no entanto, a possibilidade de que as inovações tecnológicas não surjam na velocidade adequada — novas tecnologias levam tempo para ser completamente implementadas. Por isso, não podemos descartar o recurso da geoengenharia, nome que se dá a intervenções em larga escala para tentar esfriar o clima terrestre — o que inclui ações para refletir a luz solar de volta ao espaço ou capturar e armazenar carbono, entre outras ideias que parecem ter saído da ficção científica. Caso tenhamos de utilizar a geoengenharia como último recurso, é melhor que suas alternativas mirabolantes sejam objeto de uma discussão internacional séria, pois demandam pesquisas e testes, além de coordenação em sua eventual aplicação.
Por fim, como não podemos estar certos de que a geoengenharia funcionará, devemos desde já organizar a adaptação às mudanças climáticas, evitando o colapso de algumas sociedades e os conflitos decorrentes. Esse, pelo menos, é um tema ao qual as negociações internacionais passaram a dar atenção, aprovando programas de ajuda aos países mais vulneráveis. Não se sabe, entretanto, se esse auxílio sairá do papel em tempos de crise financeira mundial.
Por isso, a discussão de fundo extrapola a questão do clima. Ela abrange toda a nossa economia — e a nossa vida. A crise ambiental e a crise financeira são faces da mesma moeda. Os mesmos incentivos e motivações equivocados que levaram a uma nos conduziram à outra. Ambas resultam de vivermos acima de nossas possibilidades, quer econômicas — causando déficits fiscais de difícil correção —, quer ambientais — levando-nos a uma situação em que a demanda por recursos naturais supera a capacidade de regeneração do planeta.
Há quem considere que esses dois déficits podem ser empurrados para as gerações futuras. No entanto, tanto a crise ambiental quanto a financeira mostram que a geração hoje no poder irá sofrer de imediato as consequências dos exageros cometidos. Não se trata mais de trocar o bem-estar futuro pelo bem-estar presente. Nossos erros estão nos causando mal-estar aqui e agora. A sustentabilidade, antes vista como utopia, transformou-se em necessidade. Ainda há tempo de reverter esse quadro, criando o ciclo virtuoso que poderá evitar o declínio de nossa civilização. Mas precisamos nos apressar.
Publicado no Guia de Sustentabilidade de 2011 da revista Exame, Novembro de 2011