terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Artigo - Guia Exame de Sustentabilidade 2011

A nova governança global

Com o poder do Estado diluído pela globalização, a agenda do crescimento sustentável depende cada vez mais da atuação de outros níveis de influência, como as empresas transnacionais, as organizações não governamentais e os blocos regionais de países, e de ações e coalizões que promovam um ciclo virtuoso de sustentabilidade  

Eduardo Felipe Matias 

Em 2012, a cidade do Rio de Janeiro vai sediar a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Para que o encontro traga resultados positivos, alguns problemas precisam ser superados. O primeiro deles é que o malabarismo diplomático necessário para chegar a um consenso em negociações multilaterais envolvendo quase 200 governos nacionais — nas quais a discordância de um único país pode impedir o acordo — costuma resultar em textos vagos e pouco efetivos. Logo, para os que acreditam que a Rio+20 deveria gerar um tratado que estabeleça obrigações a todos os países, impondo mecanismos de fiscalização de seu cumprimento e sanções para os que o desrespeitarem, as notícias não são boas. Esse tipo de acordo provavelmente não virá durante a conferência. E, se viesse, dificilmente seria ratificado por todos os países.

O segundo problema é a definição dos objetivos do encontro. Muito se tem falado sobre metas de redução de emissões, mas pouco sobre como alcançá-las. Na formação do preço dos produtos e dos serviços, o livre mercado não considera os custos sociais e ambientais das emissões de CO2 e outros gases de efeito estufa na atmosfera. Se considerasse, forneceria aos produtores e consumidores sinais claros que os induziriam a optar por produtos baseados em tecnologias de baixo carbono. Sem esses sinais, o que se tem é um círculo vicioso de produção e consumo insustentáveis. Reverter esse quadro é uma condição essencial para o desenvolvimento de uma “economia verde”, como a Rio+20 pretende discutir. 

A atribuição de um preço ao carbono pode ocorrer de diversas maneiras, tanto por meio de mecanismos de comércio de licenças de emissões quanto pela criação de impostos. Essas medidas não agradam a alguns países poluidores, o que dificulta sua aplicação universal. Por outro lado, governos que as adotem individualmente correm o risco de ser acusados de prejudicar a competitividade nacional. Como resolver esse impasse?

A resposta está relacionada à estrutura institucional para promover o desenvolvimento sustentável, um dos focos da Rio+20. A globalização diluiu o poder entre diversos atores que rivalizam e interagem com os Estados, compondo o complexo sistema chamado de “governança global”. Nele, importam os governos nacionais, mas têm papel relevante também as empresas transnacionais, as organizações não governamentais, os municípios, os blocos regionais e vários outros diferentes níveis de autoridade com capacidade de emitir regras que são seguidas por seus membros, muitas vezes voluntariamente.

Coalizões pela sustentabilidade

Para levar adiante um plano de precificação do carbono — ou outra medida que leve a um corte mais significativo de emissões —, é possível que tenhamos de nos valer de outros níveis globais de autoridade, como é o caso de arranjos abrangendo um grupo reduzido de países, a exemplo do G20, ou os acordos de integração regional. É inevitável que, para não perder competitividade, esse grupo adote algum tipo de ajuste tarifário para as importações dos demais países. Internamente, isso garantiria o apoio dos que temem que a política de redução de emissões afete sua renda e seu emprego. E, no plano internacional, essa iniciativa teria o potencial de provocar um efeito dominó: empresas de países fora desse acordo poderiam perder mercado, passando a pressionar seus governos a aderir às metas de redução de emissões, o que provocaria o ingresso de novos países no acordo ou a criação de acordos semelhantes. Uma vez que esse potencial estaria diretamente relacionado à magnitude desses ajustes tarifários, algum tipo de acerto teria de ser feito envolvendo a Organização Mundial do Comércio, a quem cabe julgar se essas barreiras não causam um protecionismo indevido.

Essa ideia se aplica também às empresas. As que estão na vanguarda do movimento pela sustentabilidade devem se unir e pressionar os governos para que lhes assegurem condições para avançar rumo a modelos de negócios mais sustentáveis, sem perder sua capacidade de competir. Governos comprometidos com o desenvolvimento sustentável, por sua vez, devem oferecer vantagens a negócios com base em tecnologias de baixo carbono, estimulando um número cada vez maior de empresas a se mover nessa direção e permitindo que a balança comece a pender para o lado de políticas mais agressivas de redução de emissões.

Esses são apenas alguns exemplos de ações que criariam um ciclo virtuoso do desenvolvimento sustentável, para o qual a Rio+20 poderia contribuir. Aí surge o terceiro problema a ser enfrentado na conferência: a definição de um foco. Este não deveria se concentrar na ação direta dos governos nacionais, mas na indução e na regulação dos comportamentos dos outros integrantes da sociedade global por meio de incentivos e controles adequados.

Claro que essas ações podem levar tempo para surtir efeito, razão pela qual o foco das discussões deve ir além. Evitar as mudanças climáticas exige transformações profundas e rápidas na matriz energética, nos transportes e nos hábitos mundiais, um “tudo ao mesmo tempo agora” improvável que nos leva a refletir sobre o que fazer caso a redução das emissões não ocorra em tempo suficiente. Há três ações possíveis e complementares: inovação, geoengenharia e adaptação.

O caminho da inovação

A substituição do petróleo e do carvão por fontes de energia renováveis é complicada e cara. Seu sucesso depende, em grande parte, de inovações que aperfeiçoem e barateiem as tecnologias existentes, e talvez só seja possível com a invenção de novas tecnologias, radicalmente diferentes das utilizadas hoje. Por esse motivo, os governos devem investir pesado em pesquisa e desenvolvimento, agindo de forma coordenada e envolvendo as empresas nesse esforço.

Tecnologias mais em conta facilitam a vida dos governos que desejam aprovar cortes de emissões, ao tornarem essas medidas mais palatáveis. É preciso considerar, no entanto, a possibilidade de que as inovações tecnológicas não surjam na velocidade adequada — novas tecnologias levam tempo para ser completamente implementadas. Por isso, não podemos descartar o recurso da geoengenharia, nome que se dá a intervenções em larga escala para tentar esfriar o clima terrestre — o que inclui ações para refletir a luz solar de volta ao espaço ou capturar e armazenar carbono, entre outras ideias que parecem ter saído da ficção científica. Caso tenhamos de utilizar a geoengenharia como último recurso, é melhor que suas alternativas mirabolantes sejam objeto de uma discussão internacional séria, pois demandam pesquisas e testes, além de coordenação em sua eventual aplicação.

Por fim, como não podemos estar certos de que a geoengenharia funcionará, devemos desde já organizar a adaptação às mudanças climáticas, evitando o colapso de algumas sociedades e os conflitos decorrentes. Esse, pelo menos, é um tema ao qual as negociações internacionais passaram a dar atenção, aprovando programas de ajuda aos países mais vulneráveis. Não se sabe, entretanto, se esse auxílio sairá do papel em tempos de crise financeira mundial.

Por isso, a discussão de fundo extrapola a questão do clima. Ela abrange toda a nossa economia — e a nossa vida. A crise ambiental e a crise financeira são faces da mesma moeda. Os mesmos incentivos e motivações equivocados que levaram a uma nos conduziram à outra. Ambas resultam de vivermos acima de nossas possibilidades, quer econômicas — causando déficits fiscais de difícil correção —, quer ambientais — levando-nos a uma situação em que a demanda por recursos naturais supera a capacidade de regeneração do planeta.

Há quem considere que esses dois déficits podem ser empurrados para as gerações futuras. No entanto, tanto a crise ambiental quanto a financeira mostram que a geração hoje no poder irá sofrer de imediato as consequências dos exageros cometidos. Não se trata mais de trocar o bem-estar futuro pelo bem-estar presente. Nossos erros estão nos causando mal-estar aqui e agora. A sustentabilidade, antes vista como utopia, transformou-se em necessidade. Ainda há tempo de reverter esse quadro, criando o ciclo virtuoso que poderá evitar o declínio de nossa civilização. Mas precisamos nos apressar.


Publicado no Guia de Sustentabilidade de 2011 da revista Exame, Novembro de 2011

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Artigo - Folha de S.Paulo - "Indignados refletem mudança que resultou da crise de 2008"

Indignados e com razão
Eduardo Felipe P. matias

Indignados de todo o mundo se unem. Protestos espalham-se por diversas cidades, impulsionados pelas redes sociais e pelas novas tecnologias que permitem compartilhar o mal estar e passar do incômodo individual para a ação coletiva. São acusados de não saberem o que querem e de não apresentarem soluções.

Claro, indignar-se apenas não basta. É necessário identificar o que deu errado e indicar o que precisa ser mudado.

A resposta está nas origens da crise de 2008 e no exemplo dos Estados Unidos, onde a onda de inconformismo já chegou. Aspectos institucionais, como a desregulamentação, levaram ao predomínio da cultura do sistema financeiro “na sombra”, com seu apetite por negócios de maior risco – e maiores rendimentos –, e ao surgimento de bancos “grandes demais para quebrar” que sabiam que os governos não poderiam deixar de vir em seu socorro em uma emergência – como realmente ocorreu, e agora assistimos às consequências desses resgates, que aprofundaram os déficits públicos.

Mas o principal aspecto institucional que explica a crise são os incentivos perversos. Havia pouca relação entre a remuneração dos executivos e a performance das companhias. Isso fica claro quando se analisa o histórico de empresas que quebraram e que vinham pagando fortunas a seus diretores nos anos anteriores, enquanto caminhavam para o precipício. Pior ainda: mesmo no auge da crise, em meio a demissões e recessão, parte do dinheiro dado pelos governos para resgatar os bancos foi usada para pagar bônus astronômicos. Apenas reflexo da ganância? Talvez não. Sistemas de remuneração baseados no preço das ações em curto prazo – que será mais alto quanto maior for o lucro anunciado, mesmo que este possa depender de uma contabilidade “criativa” – podem induzir os executivos a atitudes contrárias aos interesses de longo prazo de suas empresas, inclusive o maior deles, sua própria perenidade.

Wall Street fornece apenas um exemplo do estrago que regulações ausentes ou ineficazes e incentivos distorcidos podem causar. Estrago que, no caso americano, foi também alimentado pelo consumismo desenfreado que, em escala global, ameaça o meio ambiente e nos empurra para a próxima grande crise que teremos que enfrentar. Muitos outros exemplos poderiam ser dados, como governos que não cumprem seu papel, sociedades desiguais, Estados corroídos pela corrupção, todos eles provocando indignação em maior ou menor grau. Todos envolvem instituições inadequadas, compondo um modelo de governança global caracterizado pela falta de efetividade e de legitimidade e pelo predomínio do interesse privado sobre o público. Instituições que, na melhor hipótese, funcionam mal e, na pior, geram comportamentos predatórios que exterminam qualquer chance de um futuro melhor.

Se a resposta sobre o que precisa ser mudado parece simples, o caminho para promover essa mudança não é fácil. Alterar nossas instituições passa por uma infinidade de reformas, que vão da governança corporativa aos sistemas eleitorais, e por profundas modificações no comportamento de toda a sociedade, reduzindo níveis de consumo e aumentando os de solidariedade. Demandará mobilização inédita e trabalho duro. Não será um passeio no parque, mas indignar-se já é um ótimo começo.

Publicado no jornal Folha de S.Paulo em 2 de novembro de 2011, p. A20

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

#OccupyWallStreet?

É cedo para dizer se haverá uma “Primavera Yankee”, mas o fato é que os americanos já demonstram sinais de que não estão contentes em viver no país desenvolvido mais desigual do mundo.

Três livros ajudam a entender as origens da crise que fez com que os americanos se unissem aos “indignados” de outras partes do mundo:

- Stiglitz, Joseph E. Freefall: free markets and the sinking of the global economy, Londres : Allen Lane, 2010

- Krugman, Paul. The return of depression economics and the crisis of 2008, New York: W.W. Norton, 2009

- Wolf, Martin. Fixing global finance, Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2010

O mais completo deles é o de Stiglitz, já que os outros apenas acrescentam, a livros anteriormente publicados, capítulos analisando a crise atual. Lidos em conjunto, os três livros apresentam um bom panorama dos principais fatores que levaram à crise:

1) desequilíbrios macroeconômicos (aspecto que é mais enfatizado por Wolf, que culpa os superávits de países como a China pelo excesso de liquidez que levou à bolha dos empréstimos subprime nos Estados Unidos);

2) desregulamentação financeira (o livro de Krugman tem um capítulo sobre “shadow banking system” onde mostra os efeitos da derrogação da Lei Glass-Steagall nos Estados Unidos, que permitiu que os bancos comerciais entrassem em negócios de bancos de investimento, aumentando o seu risco);

3) incentivos perversos (Stiglitz é o mais preocupado com as falhas de governança corporativa que levaram à crise, que ele aborda em um capítulo inteiro, intitulado “O triunfo da cobiça sobre a prudência”)

Poucas medidas foram tomadas até agora para resolver esses problemas. O enorme resgate do sistema financeiro patrocinado pelos governos agravou os déficits públicos e contribuiu para a crise atual. Wall Street continua resistindo ao aumento da regulação, e bônus astronômicos voltaram a ser pagos. Daí a justificada indignação de uma população obrigada a conviver com o desemprego e a recessão.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Artigo - jornal Brasil Econômico, 27/09/11

Agravamento da crise e seus reflexos na globalização

Eduardo Felipe P. Matias

A prolongada crise financeira mundial põe a globalização em xeque. Será que, como ocorreu com o período de grande internacionalização ocorrido nas décadas que antecederam a Primeira Guerra Mundial, a globalização atual irá acabar?

Poucos assuntos foram tão discutidos nos últimos anos quanto a globalização. Mas nem sempre essa discussão leva em conta o quanto o mundo está hoje, de fato, internacionalizado. E esse é um dado essencial, se quisermos entender o que está em jogo com o agravamento da crise e possível retração da globalização.

Se considerarmos as atividades que podem ocorrer tanto dentro como através das fronteiras nacionais, e calcularmos qual porcentagem destes pode ser considerada internacional, chegaremos a números surpreendentes. Por exemplo, o investimento estrangeiro direto correspondeu em média, nos últimos anos, a apenas 10% do investimento total mundial, o que sugere que aproximadamente 90% de todo o investimento fixo mundial ainda é doméstico. E somente por volta de 20% das ações estão nas mãos de investidores estrangeiros. Logo, o mundo ainda não alcançou ao nível de integração que a badalação em torno do tema da globalização nos levaria a crer. Reações protecionistas são normais em tempos de crise, havendo por isso uma forte possibilidade de que esses números, já baixos, tendam a reduzir-se.

No entanto, a globalização, como ideia, é mais difícil de enterrar. Ela está por trás de um dos maiores crescimentos econômicos da história recente – ainda que crescimento seja uma coisa e desenvolvimento sustentável seja outra completamente diferente, mas essa é outra história. É preciso, entretanto, discutir qual globalização queremos. Os benefícios do livre comércio, em teoria, são inegáveis, e mesmo a integração dos mercados financeiros mundiais deveria aportar algo em termos de mitigação do risco e melhor alocação de recursos. Porém, a globalização foi empacotada e vendida como liberalização desenfreada. Esse entendimento não era correto, e conduziu alguns países que seguiram a cartilha à risca a fracassarem, enquanto outros, que entenderam que o capitalismo não comporta um modelo único, sendo necessário algum tipo de presença do Estado, foram bem sucedidos. Pior, a falta de regulamentação e de controles democráticos tem causado constante instabilidade econômica, levando até os mais fanáticos pela integração econômica mundial a duvidarem dos poderes mágicos desse processo.

Além disso, o aumento da interdependência foi acompanhado de uma globalização jurídica, onde tratados e organizações internacionais consolidam e protegem alguns dos princípios relacionados à liberalização econômica. Assim, mesmo que seja de se esperar que esta sofra retrações em momentos de recessão, a própria arquitetura institucional montada em volta da globalização torna difícil que sua vida seja abreviada por uma onda nacionalista e protecionista.

Tudo isso nos leva a algumas conclusões. O fato de que a globalização não é tão grande quanto parece deveria diminuir o temor de que os efeitos de seu possível encolhimento seriam devastadores. O fato de que, em sua base, há alguns conceitos úteis, capazes de gerar bem estar econômico, fazem com que seja difícil dela abrir mão. E o fato de que, como ideia, ela venha sendo distorcida, o que tem levado a desigualdade crescente e crises frequentes, mostra a necessidade de que ela seja entendida e governada de outra forma. Ela irá sobreviver. Mas terá que ser outra globalização, bem diferente da que conhecemos hoje.


Publicado no jornal Brasil Econômico, p.39, em 27 de setembro de 2011