Faz pouco mais de um mês que Donald
Trump anunciou a imposição de tarifas de 25% sobre a importação de aço e 10%
sobre a de alumínio e, desde então, o mundo vive sob a ameaça de uma guerra
comercial. Potencialmente nocivo para a economia global, que apresenta neste
momento claros sinais de recuperação, o conflito poderia balançar também o
sistema multilateral que tem como principal instituição a Organização Mundial
do Comércio (OMC).
O alvo de Trump é a China, o que
ficou ainda mais claro quando os EUA divulgaram, semanas depois, que imporiam tarifas
sobre mais de mil produtos importados daquele país, atacando a apropriação
indevida, pelos chineses, de propriedade intelectual de empresas americanas. A
China reagiu ameaçando sobretaxar uma série de produtos americanos, o que pode
levar a uma escalada de retaliações mútuas que, na verdade, não interessaria a
nenhum desses dois países.
No caso dos EUA, por exemplo, o
aumento de tarifas sobre o aço e o alumínio tende a ser um tiro que sairá pela
culatra. Ao jogar para a parte da torcida que o elegeu – eleitores do velho
cinturão industrial em crise – Trump pode prejudicar a competitividade das
indústrias que têm o aço e o alumínio como insumos, como a automobilística e a
de eletrodomésticos, que empregam muito mais trabalhadores do que aquelas que
se tenta proteger. O aumento geral de preços e as demissões nessas indústrias,
que devem superar as vagas geradas com a medida, diminuirão o bem-estar
econômico geral da nação.
Além disso, ao atirarem na China,
os EUA acabaram acertando outros países, muitos deles seus aliados históricos. Pelo
menos, ao contrário do que fora cogitado inicialmente, Canadá e México, parceiros
dos EUA no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), ficaram de
fora da aplicação das novas tarifas sobre o aço e o alumínio. A outros exportadores,
como o Brasil – segundo maior fornecedor de aço para os EUA, que são o destino
de um terço de nossas exportações desse produto –, foi dada a oportunidade de
negociar a exclusão desse aumento, mediante a provável adoção de cotas de
exportação – condição que já foi aceita pela Coreia do Sul.
A realidade de que os principais fornecedores
de aço e alumínio para os EUA não sejam propriamente nações inimigas enfraquece
a justificativa inicialmente invocada por Trump de que a medida visaria à
proteção da segurança nacional, pois a dependência dos produtos importados seria
prejudicial para a indústria de defesa norteamericana. Reforça essa impressão o
fato de que os EUA importam apenas 30% daquilo que consomem, e de que somente
uma pequena parcela do aço produzido ou comprado pelos EUA é destinada a fins
militares.
Ainda que a segurança nacional
configure uma exceção ao regime geral de livre comércio, prevista no artigo XXI
do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), que integra os acordos da OMC,
seu uso é arriscado e tem sido evitado ao longo dos anos, uma vez que sua
aceitação abriria precedente a ser utilizado por outros países para
restringirem suas importações.
Por isso, em um primeiro cenário
possível, se a segurança nacional servisse de base de defesa em uma ação na OMC
e isso viesse a assegurar a vitória aos EUA, poderia se produzir um efeito cascata
terrível para o comércio internacional, com outros países se aproveitando da
mesma brecha para adotar medidas protecionistas.
Assim, seja por este não estar perfeitamente
configurado, seja pelo receio que ele provoca, o argumento da segurança
nacional dificilmente prevalecerá em uma eventual ação na OMC.
Formas alternativas de tratar o
caso não devem aumentar as chances dos EUA. Ao contrário, algumas delas podem
provocar prejuízos mais imediatos para esse país, uma vez que têm o potencial
de acarretar efeitos que antecederiam uma sentença final desfavorável na OMC, que
tardaria alguns anos para ser proferida – talvez Trump, inclusive, conte com
essa demora, até porque, como veremos mais adiante, seu governo tem contribuído
para tornar menos eficiente o sistema de solução de controvérsias da
organização.
Não por acaso, China, Índia e União
Europeia (UE) já apresentaram pedido de consultas na OMC – primeiro passo para
um litígio naquela organização –, com o objetivo de discutir a medida norteamericana,
mas em outras bases.
Em seu pedido, a UE repete o
argumento que tem defendido desde que as tarifas foram anunciadas, de que, ao
contrário do que os EUA querem fazer crer, a proteção da segurança nacional não
é aplicável a essa situação. Para a UE, as tarifas sobre o aço e o alumínio
constituem medidas de salvaguarda, que são tema de um acordo específico, cujas
disposições – entre elas a obrigação de notificar previamente o Comitê de
Salvaguardas da OMC – não teriam sido respeitadas pelos EUA. Pretende, com
isso, obter compensações a curto prazo, como permitido por esse acordo.
Para serem adotadas, salvaguardas deveriam
se basear em um aumento súbito e significativo das importações que causasse
graves prejuízos à indústria local, e não há indícios de que isso tenha
ocorrido nos EUA (independentemente dessa discussão, vale observar que um possível
desdobramento do aumento de tarifas é que o desvio do comércio do aço e alumínio
que os norteamericanos deixarem de importar leve a um crescimento imediato na
entrada desses produtos em outros países – os quais teriam, eles sim, o direito
de impor salvaguardas).
Logo, também nessa hipótese, é provável
que, nas bases em que o tema vem atualmente sendo discutido, se a disputa for
levada para a OMC, os EUA saiam derrotados.
Caso isso aconteça, o que esperar
da reação de Trump?
Se o presidente norteamericano resolver
simplesmente ignorar a decisão e mantiver as tarifas, os EUA se sujeitarão às
retaliações dos países afetados, como determinam as regras da OMC – quadro que,
embora esteja dentro das regras do jogo, acabará prejudicando o comércio
internacional como um todo.
Porém, há uma possibilidade mais
preocupante. O presidente norteamericano reitera a cada oportunidade seu
desprezo pelo multilateralismo em geral e pela OMC em particular. Trump já
acusou essa organização de tornar quase impossível que seu país fizesse bons
negócios, e tem contribuído para bloquear a nomeação de juízes para o
preenchimento das três vagas em aberto no Órgão de Apelação do sistema de
solução de disputas da OMC – mesmo se as estatísticas mostram que os EUA são
mais vitoriosos nesse sistema do que a maioria dos países, tanto nos casos que
iniciam quanto naqueles em que são questionados.
Não seria de se
estranhar, portanto, que a condenação dos EUA pela OMC fosse vista por Trump
como a desculpa perfeita para reforçar suas tendências isolacionistas e propor
a retirada dos EUA da organização, ameaça que seria certamente desastrosa para
um sistema multilateral de comércio que hoje já se vê enfraquecido.
Artigo publicado originalmente no site Meio Ambiente Rio, em 18/04/18: https://meioambienterio.com/