As pedras no caminho de Paris
No meio do caminho até Paris
tinha duas pedras. Como contorná-las, possibilitando um acordo global efetivo
de combate às mudanças climáticas, promete ser o grande desafio da humanidade
neste ano que se aproxima.
Os países agora reunidos em
Lima para a 20ª Conferência das Partes (COP-20) da Convenção do Clima da ONU se
comprometeram a assinar, em dezembro de 2015, na COP-21 que ocorrerá na capital
francesa, um tratado que se aplicará a todos eles a partir de 2020.
Uma das discussões importantes da COP de Lima
é a do texto negociador que servirá de base a esse novo acordo.
A primeira pedra no caminho dessa
negociação deriva de seu próprio modelo, baseado no consenso. Conciliar os diferentes interesses
de mais de 190 países não é missão simples, o que frequentemente leva a
dois resultados, ambos igualmente ruins: ou não se chega a um acordo, ou se alcança
um acordo frágil.
Essa
fragilidade resulta de dois traços comumente encontrados nesses documentos. O primeiro
é a linguagem diluída. Se a missão é chegar
a um “produto” na forma de tratado, a forma mais fácil de cumpri-la é
negociar um documento vago que permita aos governos dizer que tomaram uma
atitude enquanto, na prática, não se
sujeitam a maiores consequências.
O segundo
é que esse tipo de acordo universal quase nunca estabelece sanções. A exigência do consenso torna pouco provável que punições
severas sejam aceitas por países que terão dificuldades em cumprir o acordado,
o que leva seja ao enfraquecimento do mecanismo de sanção que estiver sendo discutido,
a fim de manter esses países no acordo, seja à criação de brechas que poderão
ser aproveitadas pelos países em questão. E, quando esse obstáculo é superado e
se chega a um mecanismo eficaz, os potenciais descumpridores quase certamente
desistirão de aderir ao acordo, que deixa de ser universal.
Essa
lógica é particularmente aplicável aos regimes ambientais internacionais por
dois motivos.
Primeiramente,
estes têm a finalidade de resolver problemas de caráter mais multilateral do
que bilateral. Em um regime de comércio – como o da Organização Mundial do
Comércio (OMC) – a violação por parte de um país membro pode na maioria das
vezes ser efetivamente punida por outro membro, por meio de retaliações diretas.
No caso dos regimes ambientais, o descumprimento tende a afetar não a uma nação
em particular, mas a todas, e o incentivo para um país punir individualmente o
não cumprimento por parte de outro é menor, o que torna mais necessária a
adoção de meios centralizados de sanção.
O
segundo motivo é que regimes ambientais diferem de outros mais complexos – por
exemplo, aquele da União Europeia, que abrange políticas comuns em diversas
áreas, como concorrência, agricultura e pesca. Uma vez que esses regimes
complexos regulam grande variedade de assuntos, o não cumprimento acaba se
distribuindo entre diferentes países, em diferentes áreas. Nesse caso, é do
interesse de todos aceitar mecanismos de sanção mais eficazes, pois mesmo que
cada um deles ache isso indesejável naquela área particular em que poderá não respeitar
as regras estabelecidas, a possibilidade de vir a ser punido naquela área é
compensada pela perspectiva de que sanções sejam aplicadas aos demais países
caso estes violem suas obrigações em outras áreas. Já os regimes ambientais tendem
a focar em um único assunto – biodiversidade, proteção florestal etc. –, o que
faz com que o descumprimento normalmente se concentre em alguns países. Para
estes, aceitar sanções seria o equivalente à autopunição e, à medida que o
consenso é exigido para adotá-las, eles se aproveitam disso para barrá-las.
Todos esses fatores complicam
o trabalho dos diplomatas que atuam nesses amplos processos multilaterais na
área ambiental, chegando-se a um acordo
onde este é possível, o que leva a documentos que adotam apenas o mínimo
denominador comum – conclusão especialmente verdadeira no caso das negociações
climáticas.
E aqui
nos deparamos com a segunda pedra no caminho de Paris, relacionada às próprias
caraterísticas do problema que se quer combater. Em temas como a regulação das
emissões de gases de efeito estufa – que requerem uma complicada coordenação de
políticas custosas e que, portanto, afetam a competitividade nacional – os
compromissos que um país está disposto a assumir dependem daqueles que seus concorrentes
econômicos assumirem, o que gera uma barganha justificável, porém mesquinha que
impede os países de alcançarem o seu potencial máximo de redução de emissões.
Alinhar
esses compromissos – as chamadas Contribuições Nacionalmente
Determinadas, que deverão ser entregues no primeiro trimestre de 2015 – é a árdua tarefa dos negociadores durante o ano
que vem. Essa definição “de baixo para cima” (bottom-up) do que os países estão de fato dispostos e são capazes
de fazer permitirá prever objetivos globais baseados nesses dados de realidade.
Logo, é essencial que o processo vá além da fixação de metas – como aquela de
limitar o aumento da temperatura global a 2ºC – e insista em estabelecer as
medidas de controle de emissões que os governos irão adotar. Menos promessas e
mais políticas.
Os dois fatores que podem
dificultar que se chegue a um acordo em dezembro do ano que vem não são, por si
sós, negativos. O consenso legitima os acordos da ONU, cujo caráter democrático
deveria contribuir, em princípio, para sua efetividade. E a preocupação com a
competitividade nacional face à de outros Estados é perfeitamente razoável e
justa. Porém, combinados, servem de instrumento e pretexto para que
soberanismos irracionais se imponham sobre uma agenda que a sociedade global
precisa adotar com urgência. 2015 é o ano de
superar esses obstáculos. Caso contrário, como no poema, nunca esqueceremos que no meio do caminho tinha duas
pedras. Tinha duas pedras no meio do caminho.
Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 22 de agosto de 2014, p. A13.